Como se tornar discípulo (a) verdadeiro(a) – Para se caminhar é preciso ver – Mc 10,46-52 (Ano B)
Neste XXX Domingo Comum do Ano B, em pleno mês missionário, o evangelho lido nas comunidades é Marcos 10, 46-52. É importante lembrar que não podemos interpretar esta e nenhuma outra narrativa dos quatro evangelhos da Bíblia como se fossem crônicas jornalísticas, escritas no calor dos fatos. Não devemos recair em interpretações fundamentalistas ou literalistas. O evangelho de Marcos, escrito na década de setenta do século I, é teologia e não história fria. Com os olhos e a experiência de quem crê que Jesus Cristo está vivo, ressuscitado e presente na caminhada das comunidades, o evangelho busca passar uma mensagem de superação da cegueira e de compromisso com a caminhada no movimento popular religioso de Jesus Cristo. Devemos observar o processo de libertação pelo qual passa o cego, os vários passos que o levam da cegueira ao seguimento de Jesus.
É a segunda vez que o evangelho de Marcos narra a cura de um cego realizada por Jesus. A primeira cura ocorreu na saída da Galileia, em Betsaida (cf. Mc 8,22-26). A cura do evangelho deste domingo acontece na saída de Jericó, última parada na jornada de Jesus a Jerusalém, onde Ele será condenado à morte pelos poderes opressores, mas ressuscitará.
Na Bíblia, Jericó foi o ponto de entrada do povo hebreu que ocupou a Terra Prometida, Palestina (cf. Js 6). Em Josué 2, na periferia de Jericó, Raab, uma mulher dona de pensão e periferia, acolhe e protege os espiões enviados por Josué para planejar a ocupação da terra, consolidando uma aliança entre os explorados da cidade e os escravizados que tinham fugido do Egito dos faraós para conquistar a terra em que “corria leite e mel”. Ao registrar isso, o evangelho de Marcos parece indicar Jericó como o local de entrada dos marginalizados no caminho de libertação que passa pela Páscoa de Jesus Cristo.
Marcos descreve a cena quase como uma peça teatral, com diversos personagens: Jesus, os discípulos(as) e a multidão (ochlos, em grego), ou seja, a massa de peregrinos(as) que iam a Jerusalém para a festa das festas, a Páscoa. Enquanto Jesus e seus seguidores(as) deixam Jericó, surge à margem da estrada um cego mendigo, marginalizado. Marcos, que até então só havia dado nome a um personagem (Jairo), dá nome ao cego: Bartimeu, filho de Timeu, cujo nome possivelmente significa “o impuro”. Segundo as leis da pureza, quem se aproxima de uma pessoa impura também se torna impuro. Bartimeu é cego como os discípulos, que não conseguem enxergar com olhos renovadores o projeto divino que Jesus quer cumprir, compreendendo o messianismo como um projeto de realeza e poder.
O evangelho diz que, assim como os discípulos, Bartimeu aclama duas vezes: “Jesus de Nazaré, filho de Davi” (Mc 10,47-48). Porém, diferente dos discípulos, que no evangelho anterior buscavam poder, o cego e excluído clamava: “Tem misericórdia de mim” (Mc 10,47-48). Os discípulos e possivelmente outros na multidão tentam silenciá-lo, assim como a sociedade frequentemente faz com os marginalizados, que vivem à margem da estrada da vida. No Brasil e no mundo, muitos são empurrados para periferias sociais e existenciais, sendo chamados a sobreviver sem voz para denunciar as injustiças que enfrentam, pois “se falar e denunciar injustiças, morre”; “se ouvir e falar, morre”; perde emprego, é forçado a votar em coronéis políticos para não ser punido após as eleições ou a suportar opressão de patrões por não verem alternativas de libertação. Contudo, Jesus não aceita essa postura e manda chamar o homem que clama por socorro, demonstrando seu compromisso com os marginalizados. “Pai, afasta de mim este Cale-se!”, protestam Chico Buarque e Milton Nascimento com a música Cálice diante da censura da ditadura militar-civil-empresarial.
Alguém encoraja o cego a empreender um processo de libertação, dizendo: “Coragem! Levanta-te! Jesus te chama” (Mc 10,49). Essas palavras são um convite para cada um e cada uma de nós hoje. Aliás, em várias passagens da Bíblia, quando um anjo convoca alguém para uma missão, as palavras “Coragem!” e “Não tenha medo!” são usadas. Infelizmente, programas de TV, rádio ou jornais que difundem o medo afetam a coragem das pessoas e corroem sua fé que, biblicamente, é sinônimo de coragem.
Marcos faz questão de relatar que Bartimeu joga de lado a capa de mendicante, se levanta e vai ao encontro de Jesus, contrariando as leis da pureza, que proibiam que ele, impuro, se aproximasse de alguém que era considerado puro. Ele tem mais coragem que o apóstolo Pedro, que reconheceu que Jesus era o Filho de Deus, mas teve medo (Mc 8,27-33) e o negou três vezes (Mc 14,66-72). O homem rico que encontrou Jesus em busca de vida eterna não conseguiu desapegar-se de suas riquezas para partilhá-las com os pobres, enquanto o cego desapega-se de sua única posse, a capa de mendicante. Jesus, em sua atitude não assistencialista, não oferece uma moeda ao cego, mas lhe pergunta: “O que você quer que eu faça por você?” (Mc 10,51). O cego não pede esmola, mas clama por um direito: “Mestre, faze que eu veja” (Mc 10,51). Encantado com sua fé, Jesus declara: “Vai, tua fé te salvou”(Mc 10,52). Observe o detalhe: fé do cego e não a fé em Jesus. E o cego se torna discípulo e “o seguia no caminho” (Mc 10,52).
Neste evangelho, Jesus nos ensina que, para sermos verdadeiramente humanos, precisamos ouvir e atender aos clamores dos injustiçados e sofredores, como Bartimeu. Do cego e pobre Bartimeu, Jesus aceita o título messiânico que não havia aceitado da parte de Pedro e dos discípulos. Só que no caminho, Bartimeu vai ter que ver de outra forma e com outros olhos como Jesus viverá essa missão de filho de Davi. Na entrada em Jerusalém, que o evangelho narra logo depois, uma multidão de peregrinos(as) pobres aclamará Jesus com o mesmo título de filho de Davi e Ele não recusará. Do meio dos pobres, Jesus acolhe o grito e responde à sua esperança.
Em um de seus livros de histórias latino-americanas, o escritor Eduardo Galeano conta o caso do menino que vivia pedindo ao pai para que esse o levasse a conhecer o mar. Um dia, o pai o levou consigo e, depois de terem viajado um dia, subiram em uma colina e, ali, estava diante deles o mar. Diante daquele mundo de água e de um horizonte que ele nunca tinha visto, o menino sussurrou ao pai: “Pai, ensina-me a olhar”.
Este evangelho nos confirma que viver hoje o discipulado de Jesus exige de nós uma mudança de olhar e de prática. O Cristo do poder e do prestígio, ligado à religião cultual, não é o Jesus que abriu os olhos de Bartimeu e abre os nossos para a caminhada pascal. É na caminhada da libertação, a partir do povo empobrecido, que participamos da missão de Jesus.
“Turma do caminho” foi o primeiro nome dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, “os que eram do Caminho” (At 9,2), antes de serem chamados de cristãos pelo povo de Antioquia (At 11,26), pela primeira vez. Na nossa realidade, “caminhada” é o nome que se dá à Igreja de base que se insere nos movimentos sociais e no caminho de construção de um novo mundo possível, iluminando as trevas, sendo sal na terra e na comida e fermento na massa.
Quem lê o evangelho de Marcos sabe as dificuldades que a própria comunidade dos(as) discípulos(as) de Jesus teve para compreender e assumir a proposta de Cristo. Alguns discípulos estavam muito presos às expectativas messiânicas da cultura judaica da época e outros, de cultura mais grega, também não compreendiam o caminho que faziam com Jesus: caminho para Jerusalém, mas, na realidade de Jesus, caminho para a sua condenação à morte, ao fracasso aparente de sua missão, caminho para a doação de sua vida na cruz.
Até encontrar-se com Jesus e seu movimento, Bartimeu era cego e mendigo. O encontro de Bartimeu com Jesus despertou um lindo processo de humanização que o transformou em discípulo verdadeiro de Jesus no caminho para a doação de vida, enfrentando os poderosos em Jerusalém.
Em Santa Tereza, bairro histórico de Belo Horizonte/MG, a sede única da Associação filantrópica União Auxiliadora dos Cegos de Minas Gerais, que, em mais de setenta anos de existência, já acolheu mais de mil cegos e é lar hoje de muitos deficientes visuais, está com despejo decretado por um Desembargador do Tribunal Regional Federal 6ª Região (TRF6). Uma autoridade perguntou ao atual presidente da União, Renato Leonardo Ferreira: “Caso aconteça mesmo o despejo, vocês cegos aceitam ir para um abrigo público da prefeitura ou para um asilo ou casa de acolhida?” Ele, de cabeça erguida, respondeu categoricamente: “Jamais aceitaremos ser retirados da nossa casa, que é o nosso lar. Pedimos ao Governo Federal e à Justiça Federal que abram processo de negociação que leve à exclusão do despejo, seja perdoando a dívida como o Governo Federal tem feito nas últimas décadas com muitos usineiros, latifundiários e empresários ou encontrando outra forma de se pagar a dívida, mas sem nos retirar do nosso lar. Se se perdoa dívida de tantos ricos falidos, por que não perdoar a dívida de uma entidade filantrópica como a União Auxiliadora dos Cegos de Minas Gerais?”
Enfim, no Brasil injusto, nem mesmo os cegos(as) estão livres de despejo. Como Bartimeu, as pessoas cegas seguem lutando por seus direitos e seguindo a Jesus. Estar com estas pessoas periferizadas na luta pelos seus direitos é o que o evangelho do discípulo Bartimeu nos pede e ensina.
Cantemos com Zé Vicente:
Bendita e louvada seja esta santa romaria
Bendito o povo que marcha,
bendito o povo que marcha,
tendo Cristo como guia.
Sou, sou teu, Senhor,
sou povo novo, retirante e lutador,
Deus dos peregrinos, dos pequeninos,
Jesus Cristo redentor.
No Egito, antigamente, no meio da
escravidão, Deus libertou o seu povo.
Hoje ele passa de novo gritando a libertação.
Para a terra prometida o povo de Deus
Marchou. Moisés andava na frente.
Hoje Moisés é a gente quando enfrenta o opressor.
Reflexão por Marcelo Barros