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Reflexão do XVI Domingo do Tempo comum – Mc 6, 30–34 (Ano B) – por Ir. Marcelo Barros, OSB

No deserto e na inserção: a profecia

Diante da realidade terrível do povo empobrecido e dos desafios sociais que enfrentamos, quem se coloca a serviço das comunidades e dos movimentos sociais sente cada vez mais a tentação do ativismo. Vive na correria para dar conta de tantos desafios e atender a tantos pedidos de socorro.

O evangelho deste XVI domingo do tempo comum (Mc 6, 30-34) nos fala de uma situação semelhante nas primeiras comunidades cristãs que escreveram os evangelhos e possivelmente na própria época de Jesus. O texto conta que os discípulos e discípulas que Jesus tinha enviado em missão, dois a dois, pelos lugares onde ele mesmo deveria ir, esses irmãos e irmãs voltaram e se reuniram com Jesus. Contaram a Ele o que tinham feito na viagem e o que tinham ensinado.

Em todo o texto do evangelho, é quase a única vez em que Marcos fala que os discípulos ensinavam. De fato, a missão de Jesus e dos discípulos é sempre “fazer”, isso é a prática da vida, aquilo que sociologicamente se chama de práxis, uma ação libertadora e o ensino, ou seja, a teoria que vem da prática.

Como seria bom que, nesse domingo, cada um(a) de nós pudesse se sentir chamado(a) a se reunir com Jesus e, em postura de oração e partilha, poder contar a Ele o que, concretamente, temos feito para testemunhar o reinado divino no mundo e como temos falado da realidade.

Aos discípulos e discípulas, Jesus disse: “Venham para um lugar deserto (um retiro) e descansem um pouco”. E o comentário da comunidade de Marcos é que “de fato, era tanta gente que chegava e saía que eles (e elas) não tinham tempo nem de comer”. Quantas vezes, nós mesmos(as), em nossas casas, nossas atividades e na comunidade, vivemos, de alguma forma, essa realidade. Precisamos escutar como sendo para nós esse chamado de Jesus: Venham para um retiro. Venham para o deserto.

Sabemos que, no plano geográfico, desertos são regiões áridas, de areia e céu, nas quais podemos passar, mas onde dificilmente podemos viver, sem intervenções da técnica e das invenções modernas. Já no plano da fé, várias das grandes religiões como o Judaísmo, o Islã e mesmo o Budismo nasceram ligadas ao deserto. O deserto não é só lugar geográfico. É também espaço e dimensão espiritual e teológica.

Muitos de nós nos habituamos a identificar o deserto com lugares lindos e aprazíveis, nos quais se construíram mosteiros, ermidas e conventos, que, às vezes, são verdadeiros castelos, nos quais os(as) religiosos(as) têm tudo o que desejam e vivem livres do tumulto da vida ordinária do comum dos mortais. Não é esse o deserto de Jesus!

De fato, na Bíblia, o deserto tem sempre a dimensão do afastamento dos lugares habitados (aldeias e cidades). É lugar e tempo de solidão, mas também é espaço e ocasião de aprofundamento da comunhão da comunidade, fora da agitação das massas. É no deserto onde é mais necessário ter tudo em comum. No tempo do Êxodo, o deserto foi o tempo do namoro da comunidade bíblica com Deus em um contexto de aliança. De acordo com o texto, Deus chama a comunidade ao deserto para firmar com ela a aliança no Sinai. Depois, no decorrer da história bíblica, os profetas mostram que, para retomar o projeto divino e renovar a aliança de casamento com Deus, a comunidade precisa sempre ser reconduzida ao deserto (Oseias 2, 16 ss).

No tempo de Jesus, o deserto era o espaço da clandestinidade e da segurança no qual se organizavam os líderes de movimentos sociais e políticos contra o domínio romano. A tradição judaica ensinava: O Messias (Libertador) virá do deserto. Hoje ainda, também nós precisamos assumir nosso deserto interior, isso é, nosso espaço de solidão interior que não é isolamento, nem pode ser individualista. É quando podemos escutar a nós mesmos e dialogar com os anseios mais profundos do coração. É quando podemos verificar se realmente vivemos a espiritualidade como qualidade humana profunda, como propõem as pessoas que desenvolvem espiritualidades não religiosas.

Não conseguiremos libertação sem espiritualidade, mesmo que essa não seja religiosa. Pode ser mística humana e laical que supõe a disponibilidade de cada pessoa para mudar de vida, aceitar ser transformada e viver de modo coerente com aquilo que se propõe. Ninguém acreditaria em políticos que propõem um mundo de justiça e de partilha, mas na forma de ser, se mantêm autoritários, egoístas e que dão prioridade a suas ambições pessoais e não ao bem comum.

No evangelho de hoje, o retiro que Jesus propõe aos discípulos e discípulas parece ter fracassado porque, quando eles (Jesus e o seu grupo) chegam do outro lado do lago ao local do retiro, já a multidão os esperava e Jesus não as exclui. Ao contrário, Jesus constata que o povo está disperso, como ovelhas sem pastor. E começa também a ensinar à multidão.

Em todos os relatos evangélicos, é no deserto e dentro de uma perspectiva de caminhada libertadora que se fala na preocupação de Jesus com a segurança alimentar do povo e é no deserto que os evangelhos situam o episódio chamado comumente “multiplicação dos pães”, que consiste na partilha. Jesus manda repartir os poucos pães e peixes que alguém revela ter e isso possibilita que todos e todas possam se alimentar.

É importante perceber que, no evangelho, todo o relato da missão e a reunião dos missionários e missionárias vindos da missão com Jesus convergem para essa questão da preocupação com a fome do povo e com a palavra de Jesus à sua comunidade primeira: Deem vocês mesmos de comer ao povo.

Que essa palavra, hoje, ainda nos mobilize e faça da luta contra a fome e a insegurança alimentar uma questão de fé e de espiritualidade.