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Reflexão do XIX Domingo do Tempo Comum (Ano B) por Ir. Marcelo Barros, OSB

Passar do Pão da Vida ao Pão Vivo (Jo 6, 41-51) – Ano B

“Eu sou o pão da vida. No deserto, os vossos pais e mães comeram o maná e morreram. Mas este pão é o que desce do Céu, para que a pessoa que dele comer não morra. Eu sou o Pão Vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu darei é a minha carne, dada pela vida do mundo” (Jo 6, 48-51).

Neste XIX Domingo do Tempo Comum, o Evangelho proposto é João 6, 41-51, uma cena de discussão entre Jesus e membros da comunidade cristã, ligados à tradição judaica do templo.

O quarto Evangelho não narra a bênção que, na Última Ceia, Jesus fez ao pão e ao vinho. De acordo com este Evangelho, sempre que Jesus realizava um sinal de amor e salvação, os religiosos do templo e as pessoas ligadas à religião ritual reagem negativamente, opondo o sinal de Jesus e a antiga tradição.

Até o domingo passado, a discussão era entre Jesus e a multidão que Ele encontrou “do outro lado do lago”, ou seja, fora das estruturas da religião e da cultura judaica da época. A essas pessoas, Jesus pedia que distinguissem o sinal (sacramento) da realidade. Valorizassem o sinal como tal, mas entendessem que a meta é a realidade, e que era necessário não se deter apenas no sinal.

No trecho do Evangelho de hoje, os interlocutores mudam. Não é mais a massa de gente sem religião, mas aqueles que o quarto Evangelho chama de “judeus” ou “judaítas”. Historicamente, seriam os judeus que viviam na Galileia e em territórios fronteiriços. Provavelmente, quando este Evangelho foi escrito, referia-se aos cristãos judaizantes, pessoas que, embora membros da comunidade cristã, permaneciam apegadas à lei e às tradições judaicas, como se estas fossem a salvação.

Jesus havia dito a essas pessoas presas à religião ritual: o pão partilhado é um sinal de algo maior. Aprendam a ir além dos sinais. Quantas vezes, nós mesmos, católicos ou evangélicos, ficamos presos aos sinais e não conseguimos ir além? Não seria essa a enfermidade dos religiosos tradicionalistas, presos ao sacramentalismo e aos legalismos da religião?

A Bíblia relata que, no deserto, os hebreus que Moisés conduziu para fora do Egito murmuraram contra Deus e contra Moisés. Agora, este Evangelho nos conta que, também no deserto, os cristãos presos à lei e aos ritos murmuravam contra Jesus. Hoje, essas murmurações se tornam fake news. São, por exemplo, vídeos de acusação contra o Papa Francisco e contra bispos, padres e comunidades que ousam ir além da tradição.

De acordo com o Evangelho, Jesus aceita perguntas e acolhe dúvidas, mas se ofende quando as pessoas murmuram.

Murmurações são ruídos de comunicação que impedem ou dificultam a transparência e a clareza. A murmuração pode assumir a forma de fofoca, ou simplesmente de críticas que são feitas, mas não assumidas, dificultando a caminhada comum.

No século VI, na Regra para os mosteiros, São Bento enumera dois pecados que ele considera como as atitudes mais prejudiciais à vida comunitária. O primeiro é apropriar-se privadamente do que deveria ser comum. O segundo pecado é semelhante, mas a apropriação se dá na comunicação, por meio da murmuração. Murmurar é diferente de criticar ou questionar. Críticas e questionamentos são úteis e necessários; a murmuração, não. Ela ocorre pelas costas ou de maneira velada, traindo a confiança e quebrando a comunhão.

No contexto deste Evangelho, o motivo da murmuração é Jesus ter dito: eu sou o alimento que Deus dá para a vida de vocês. As pessoas, apegadas à lei e à letra da Bíblia, perguntavam: como ele pode se comparar ao profeta Moisés? Como pode dizer que vem de Deus se é um homem igual a nós? Nós conhecemos sua origem humilde, o vimos crescer em Nazaré e conhecemos sua família.

Até hoje, a humanidade de Jesus e dos profetas pode ser vista como um obstáculo para que as pessoas creiam. Quem conheceu mais de perto Dom Pedro Casaldáliga, lembra que, na pessoa dele, o que mais chamava a atenção não eram, em primeiro lugar, discursos e ações, mas seu olhar, seus pés descalços, seu corpo frágil e sua humanidade. Ainda nos anos 1970, ele escrevia em um breve poema:

 “Por esse simples fato
de ser também bispo,
ninguém irá me pedir
– assim espero, irmãos –
que eu deixe de ser
um homem humano”.

Todos nós vivemos porque nos alimentamos. O alimento em nós se transforma em sangue e energia de vida. Quando nos alimentamos mal, ou de forma desequilibrada, adoecemos. Também no plano interior e espiritual, precisamos nos alimentar ou receber de Deus nossa energia. Ao se colocar como “alimento vindo de Deus para a vida do mundo” e nos mandar comer, ou seja, assimilar sua carne, ou seja, sua pessoa humana, hoje, Jesus nos interroga sobre qual energia nos alimenta e nos anima. Podemos nos alimentar de nós mesmos e do nosso próprio eu. Hoje, somos novamente chamados e chamadas a nos alimentar de Jesus, do seu projeto de vida e de seu testemunho do reinado divino no mundo. Ele não somente nos dá o pão da vida que é sua palavra e a eucaristia, mas se dá a si mesmo como Pão Vivo, que alimenta e dá energia de vida e amor a toda pessoa que o segue e a toda a humanidade.

Ontem, no Brasil, as comunidades de fé celebraram os 50 anos do martírio do Frei Tito Alencar, que aos 29 anos partiu para Deus, como consequência da tortura infligida pelo Delegado Fleury, representante da Ditadura Militar. Hoje, no Brasil, não há mais ditadura militar, e ninguém é torturado como preso político. No entanto, no Mato Grosso do Sul, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), denuncia:

“Dourados, MS. As retomadas de terras Guarani e Kaiowá, Kurupa Yty e Pikyxyin estão sendo violentamente atacadas por ruralistas e capangas neste exato momento. Há vários feridos por balas de borracha e armas letais no local. Também há grande concentração de caminhonetes em torno da comunidade Yvy Ajere. A Força Nacional simplesmente se retirou do local e deixou as comunidades desprotegidas ao ataque das milícias rurais. Estão atirando no pescoço e no coração das pessoas. Há muitas crianças e idosos no local, e até o momento, recebemos informações de que há pelo menos dez gravemente feridos. A comunidade pede socorro; eles estão totalmente abandonados”.

Que Deus nos ilumine para nos organizarmos em solidariedade aos povos indígenas ameaçados em sua integridade física e cultural e nos faça ver, nas pessoas e nas comunidades, a presença do Cristo como Pão Vivo dado para a vida do mundo.

Ir. Marcelo Barros, OSB