Profecia Exige Dissenso
Neste X Domingo do Tempo Comum, o texto que o lecionário nos oferece, Marcos 3, 20-35, fecha o ciclo das primeiras atividades públicas de Jesus na Galileia. Neste evangelho, depois de enfrentar teólogos e religiosos, vemos Jesus em casa, onde por um tempo morou. Ele abriu sua casa à multidão.
Para a comunidade do evangelho de Marcos, nos anos 70 do primeiro século, era certamente um grande desafio abrir as Igrejas domésticas às pessoas mais diversas. As comunidades tinham muita dificuldade de se abrir a outras culturas e outras religiões, assim como não ligavam a fé com o compromisso social e político de transformar o mundo.
Nas Igrejas, isso era herança do Judaísmo daquela época. Para se defender das influências da cultura greco-romana, os mestres da sinagoga insistiam em salvaguardar uma espiritualidade étnica que chegava a ser racista e considerava as pessoas de outras raças e religiões como pagãs e condenadas por Deus.
Para tomar posição nesse conflito, o evangelho lido neste domingo mostra as tensões que Jesus enfrentou com os religiosos do templo e com a sua própria família.
A sociedade de Jesus era organizada a partir da relação de parentesco. Naquela cultura, para salvar a honra familiar, os parentes deveriam fazer qualquer coisa para evitar que Jesus fosse mal falado pelo povo e mal visto pelos religiosos. Por isso, a mãe e a família de Jesus concordavam com os fariseus, professores da Bíblia e pessoas influentes na sinagoga que não aceitavam abrir a comunidade e compreender a fé para além da cultura judaica.
Achavam que Jesus transgredia tanto os costumes vigentes, que parecia ter perdido a capacidade de raciocinar. Parecia estar fora de si. Precisava ser contido. Sua mãe e seus irmãos foram buscá-lo com a intenção de contê-lo. Por isso, o texto diz que “os seus queriam se apoderar dele” (v. 21). O verbo grego usado é o mesmo com o qual, no relato da paixão, o evangelho diz que os guardas prenderam Jesus. O pensamento da família era fazer Jesus desistir da sua missão perigosa, não apenas para protegê-lo, mas também para salvaguardar a própria honra familiar.
O evangelho diz que a mãe e os seus irmãos vieram buscá-lo, mas ficaram fora da casa, de pé, ao contrário do grupo dos discípulos e discípulas que se colocavam dentro e sentados ao redor de Jesus para escutá-lo e segui-lo. Conforme o quarto evangelho, escrito muito tempo depois, a mãe de Jesus acaba por se converter e aderir ao grupo de Jesus, e estará ao pé da cruz junto com o discípulo amado. Mas, é bom descobrirmos que até Maria teve de se converter, aceitar mudar de postura e se abrir.
O evangelho de Marcos liga a atitude dos familiares de Jesus que querem prendê-lo à postura dos teólogos e intelectuais do templo que vieram de Jerusalém para investigar Jesus. Os familiares diziam que Jesus estava desequilibrado e fora de si. Os escribas deram a interpretação religiosa. Afirmaram que Jesus estava agindo pelo poder do diabo. O evangelho mostra que essas duas correntes religiosas se unem: a cultura tradicional da sociedade, representada pelos familiares de Jesus, e o judaísmo rabínico fechado dos professores e intelectuais do templo.
Ao contrário dessas duas tendências, Jesus escolheu o grupo dos doze para iniciar um caminho novo, aberto a todos e todas. A Igreja não pode legitimar a família patriarcal e não deve se comportar como seita. Na Igreja, as refeições têm de ser abertas a todos e todas. A ceia de Jesus não pode suportar sistema de apartheid, no qual há pessoas que, por serem consideradas pecadoras, não podem participar da comunidade. Isso atenta diretamente contra a palavra de Jesus e o seu evangelho, aberto a todos e todas. Ao comer com gente considerada de má vida, Jesus insistia: “Eu não vim para os justos e sim para os pecadores”.
Jesus, normalmente tão aberto e mais do que compassivo com todo tipo de fraqueza humana, é extremamente duro com o pecado propriamente religioso. Jesus não suporta o pecado da virtude, a santidade arrogante, a religião desamorosa e insensível ao projeto divino da fraternidade humana.
Este evangelho diz que a religião tradicional, presa à sua própria verdade, nunca aceitará passos de abertura para o mundo, cuidado com a Terra e espiritualidade de acolhida do diferente, como o Papa Francisco propõe na Laudato Si’ e na Fratelli Tutti. Isso não é concebível para uma religião dogmática que separa o profano e o sagrado e se coloca como proprietária do que é de Deus. Por isso, Jesus diz: “Para esse tipo de pecado, não há perdão.” É o que ele chama enigmaticamente de “pecado contra o Espírito Santo”. Trata-se do pior tipo de idolatria: a religião ritualista, a absolutização do sagrado, separado da vida, o pecado que consiste em não aceitar a diversidade humana, cultural e religiosa.
Todos(as) nós podemos cair nisso quando criamos um Deus à nossa imagem e semelhança. Não podemos testemunhar um Deus mesquinho e pouco amoroso. Em outro momento do evangelho, Jesus diz que muitos religiosos do seu tempo fechavam a porta da casa de Deus para os outros e eles mesmos ficavam fora (Mt 23, 13).
Ainda hoje, nas comunidades, esse cenário se repete. Há pessoas que não fazem parte da caminhada. Olham “de fora” e com postura que o evangelho cita como “em pé”. Graças a Deus, há aquelas que, mesmo sem às vezes entender tudo, se colocam na postura de discípulos e discípulas, em torno do mestre, sentadas no círculo da comunidade, para escutar a Palavra e praticá-la na construção do projeto divino no mundo.
Em nossos dias, católicos e evangélicos tradicionalistas vivem em contínua cruzada contra quaisquer tentativas de abrir a fé para as outras culturas e para as pessoas diferentes, sejam religiosas de outras tradições, sejam de outra orientação sexual. Que Deus nos dê a graça de sermos irmãos e irmãs da comunidade nova e universal de Jesus, pessoas abertas a todos e todas e ao cuidado com a Mãe-Terra.