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Reflexão da Vigília da Noite de Natal (Ano C) por Marcelo Barros

O direito de sermos humanos e humanas – Lc 2, 1-14 (Ano C)

Quando nos encontramos em comunidade e nos saudamos na noite de Natal, trocamos votos de feliz festa e nos abraçamos. Mesmo as famílias que não praticam a fé cristã gostam de se reunir e confraternizar. Isso é bom e, seja como for, expressa algo importante dessa boa nova do Natal. Mesmo tão invadida pelo comércio e ameaçada pelo consumismo devorador, a festa do Natal ainda oferece algo de familiar e carinhoso para as pessoas que se abrem ao encontro humano e à convivência amorosa. Mesmo para quem é cristão ou cristã e se reúne em comunidade de fé, é importante ir além do folclore natalino para acolher a boa notícia que esta noite de Natal contém.

A noite de Natal não é para celebrarmos o aniversário natalício do menino Jesus, até porque ninguém sabe a data exata em que Jesus nasceu. Esta festa só começou a ser celebrada a partir do século IV, com o objetivo de dar um conteúdo mais cristão às celebrações do solstício de inverno no hemisfério norte.

O texto do Evangelho proclamado nesta noite é Lucas 2, 1-14. É tão conhecido e repetido que sobre ele se construíram histórias e lendas. Quando escutamos essa história, já imaginamos a gruta de Belém, com o boi e o burro esquentando o menino na manjedoura. O texto do Evangelho, no entanto, não traz esses detalhes. É muito mais discreto do que o folclore que gerou. De qualquer modo, não podemos deixar de observar: o Evangelho diz que o nascimento de Jesus ocorre na pobreza de Belém, onde os pais são obrigados a se recensear. Podemos dizer: “Jesus já nasce como cidadão de uma colônia do império opressor”.

Esse Evangelho não pretende ser um relato histórico. Ele tem uma linguagem pascal e é como se fosse um olhar sobre a história do nascimento e da infância, mas a partir da ressurreição de Jesus. De fato, quando esta festa foi criada, chamava-se “A Páscoa do Natal” e era destinada a anunciar a boa notícia do reinado divino no mundo. Por falar em “boa notícia”, ela está resumida nesse contraste entre a alusão inicial a César Augusto, imperador do mundo, e, do outro lado, a criancinha embrulhada em faixas e deitada numa manjedoura, numa favela da periferia do império.

Aqui está uma revolução, até então totalmente impensável, na própria imagem de Deus. Não se trata simplesmente de pensar Deus na companhia dos pobres. É o que, em grego, se chama “kenosis”, o esvaziamento do próprio Deus, que leva às últimas consequências a sua atitude desde a criação: retirar-se para deixar espaço ao mundo. É como se Deus fizesse um movimento do alto para baixo e do centro para a periferia. Isso continuará assim até a morte de Jesus na cruz.

A revelação que, através do Natal, Deus nos faz é que o sentido último da vida não é o poder, mas exatamente o contrário: o não-poder, a renúncia ao poder, para que a vida, todas as vidas, possam florescer livremente. Este Evangelho nos diz que até um decreto opressor do imperador romano acabou servindo para que o projeto salvador de Deus se cumprisse e Jesus nascesse em Belém.

É impressionante vermos, nessa história, o contraste entre duas realidades que parecem opostas e extremamente diferentes. De um lado, o Evangelho relata o clima maravilhoso dos anjos que aparecem aos pastores no campo e o anúncio que fazem: ali tudo é luminoso, e a mensagem é bela, consoladora e cheia de força. Do outro lado, está a realidade que os pastores encontram em Belém: uma criança pobre e indefesa em um ambiente muito pouco extraordinário. Há uma diferença enorme entre a palavra do anúncio dos anjos e a realidade que se constata. Muitas vezes, esse é o mais constante desafio para a fé: ver uma coisa e crer em outra, ou melhor, descobrir, por trás das coisas mais simples, triviais e humildes da vida, um milagre de Deus.

É fascinante como o Evangelho de Lucas é subversivo. Primeiramente, destaca-se o protagonismo feminino. As mulheres são as que agem antes de seus maridos, “primeireiam” (conforme o neologismo do Papa Francisco). Quem primeiro profetizou o nascimento de Jesus foi Isabel, ao ser visitada por Maria, grávida. E agora, neste texto, quem “primeireia” são os pastores, que eram os mais excluídos da sociedade, tidos como marginais e bandidos. Eles se tornam os primeiros destinatários da boa notícia do Natal. Os primeiros destinatários do Evangelho são os pobres. Um cristianismo que não tenha como opção os pobres não faz sentido de existir. É preciso subverter a ordem instituída pela cristandade.

Nesta noite, somos convidados e convidadas a continuar o caminho dos pastores a Belém. Não a Belém da Judeia, mas às muitas “Beléns” de hoje, em nossa vida. Vamos testemunhar que os presépios de hoje não são apenas os de arte armados para a festa, mas também os presépios reais, onde a palha e a pobreza resultam da ambição e da opressão da sociedade. Vamos reconhecer, nos pequeninos e pequeninas das periferias e do campo, o Verbo que se faz carne hoje.

Assumamos, então, as palhas e os problemas das nossas vidas, não como lugares feios dos quais temos vergonha, mas como presépios nos quais Jesus, não mais menino, mas ressuscitado em nós, vem se revelar e nos conduzir a sermos mais e mais humanizados(as) e a trabalharmos pela plena humanização das relações humanas e da organização do mundo. Assim, poderemos atualizar a palavra do anjo: “Eu vos anuncio uma grande alegria: hoje nasceu para toda a humanidade o Salvador”. Aleluia!