Viver hoje o divino no humano – João 1, 1-18 (Ano C)
Na noite de Natal, lemos o relato de Lucas sobre o nascimento de Jesus em Belém e celebramos o que antigamente se chamava “A Páscoa do Natal”, ou seja, a contemplação da salvação que recebemos de Deus através do nascimento de Jesus em nossa carne. Agora, no dia do Natal, lemos o prólogo do quarto evangelho e meditamos sobre como Deus se manifestou a nós através da humanidade de Jesus.
Durante séculos, profetas como Isaías opunham a força divina da Palavra de Deus à fragilidade de tudo o que é humano: “Toda criatura é como a erva do campo que hoje existe e amanhã é jogada no fogo, mas a Palavra de Deus permanece eternamente” (Is 40, 7-8).
Hoje, a novidade do evangelho é que essa Palavra Divina, eterna e maravilhosa, assume a fragilidade da criatura e se torna carne, isto é, assume nossa humanidade frágil e passageira. Até hoje, temos dificuldade de compreender e acolher a radicalidade dessa boa notícia: Deus assume tudo o que é humano. É na realidade humana (carne) que podemos encontrá-Lo. Toda realidade humana (carne) é redimida e valorizada como Palavra: comunicação.
Crer que a Palavra de Deus se faz carne significa valorizar o humano em todos os seus aspectos como lugar do encontro com o Divino.
Na Bíblia, o termo “sabedoria” (em hebraico, hokma) significa, primeiramente, experiência. Essa Sabedoria se revelou de diversas formas e nos mais diversos momentos da história da humanidade. Nas comunidades do povo bíblico, nos últimos séculos antes de Cristo, a Sabedoria de Deus foi identificada com a Torá. Os rabinos ensinavam que a Sabedoria Divina se tinha encarnado na palavra da Lei. Os comentários rabínicos diziam que a Torá foi criada antes da criação do mundo e está presente no mundo como luz para orientar os caminhos humanos. Essa luz é representada nas sinagogas pela Menorá, o candelabro de sete braços que, conforme a tradição, teria sido colocado diante da arca da aliança.
A Palavra é o que há de mais humano e, ao mesmo tempo, profundamente inserida, porque tem um corpo que é a língua e a cultura na qual se expressa. Ao mesmo tempo, por ser humana, é aberta a todas as culturas e a tudo o que é humano. Esse poema de abertura do quarto evangelho nos diz que a palavra humana é luz que ilumina todo ser humano, enquanto favorece e promove a vida. A vida é a verdadeira Torá, a verdadeira lei de Deus.
Um comentador da Bíblia, Pino Stancari, dizia: “Enquanto, normalmente, o culto precisa de um templo, um clero e uma liturgia sacral, a Palavra vem ao mundo na sua secularidade e profanidade. Ela se dirige, indistintamente, a todo ser humano”.
Na Bíblia, “carne” é o termo usado para expressar a humanidade vista enquanto separada de Deus. Esse evangelho muda essa compreensão e revoluciona a religião ao afirmar que a Palavra, isto é, a comunicação divina, se faz carne. Com essa revelação, podemos compreender que toda palavra humana é divina e manifesta a presença amorosa de Deus quando favorece ou promove a vida. Isso alarga o campo da fé.
Entre nós no Brasil, se as espiritualidades negras e indígenas ajudaram as pessoas escravizadas a resistirem à morte e, mesmo em condições terrivelmente desumanas, manterem firme a consciência de sua dignidade humana, isso significa que essas espiritualidades são de Deus e contêm a palavra de Deus. São expressões da luz de Deus para o mundo.
Para testemunhar que tudo o que favorece a vida e a dignidade humana está dentro do projeto divino, veio ao mundo o profeta João.
Será que hoje reconhecemos os profetas e profetisas que defendem a vida como testemunhas da luz e, portanto, como profetas e profetisas da encarnação divina no mundo?
Muitas vezes, erroneamente, esse evangelho foi lido como uma página dogmática. Desse poema lindo e maravilhoso, tudo o que se colhia era que Deus tinha assumido a carne humana na pessoa de Jesus. Assim, o cristianismo olhava as outras religiões com certa arrogância por ser a fé de que o próprio Deus assumiu a pele e o corpo de um homem.
Atualmente, uma das discussões mais intensas no campo da fé é entre teístas (que creem em Deus como alguém com quem podemos nos relacionar) e ateístas que não são ateus, mas cristãos ou religiosos de outros caminhos espirituais que creem em Deus como dimensão interior do ser humano e como energia amorosa do universo.
A mais antiga teologia bíblica repete a palavra do Monte Sinai: Não pronuncie o nome divino. Não pretenda definir Deus. Não O reduza a uma imagem.
No decorrer da história, celebrar a presença divina na pessoa humana de Jesus parecia simplesmente se traduzir pela expressão: Jesus é Deus feito homem. No entanto, nos séculos antigos, os pais e mães da Igreja diziam que Deus se manifestou no homem Jesus para que todo ser humano pudesse se descobrir divino e assumisse sua condição de ser divinizado. Então, a lição desse evangelho do dia de Natal não é apenas de que Jesus se parece com Deus. É que Deus se parece com Jesus, e nós O descobrimos na humanidade de Jesus.
Dom Pedro Casaldáliga nos dizia: “O Verbo Divino se fez índio”, assim como se fez negro, se fez mulher, e na ecoespiritualidade podemos dizer que se faz um com a mãe-Terra. A Palavra é divina em nós quando se torna diálogo. É a dialogicidade que nos permite viver a experiência divina no humano. Vamos vivê-la?
Poema de Dom Pedro Casaldáliga:
“Eu te reclamo, Deus,
por me teres feito assim,
Eu te tolero, Deus,
por me teres feito assim,
Eu te perdoo, Deus,
por me teres feito assim,
Eu te agradeço, Deus,
por me teres feito assim.
Por me teres feito assim,
Eu tento amar-te, livre,
eu espero mais em ti.
e, mais apaixonado
– por me teres feito assim –
Quero me saciar de ti
eternamente”.