A quem procuramos e como procuramos? (Lc 2, 41-52)
Dentro dos oito dias da festa do Natal, a Igreja Católica consagra este domingo à Sagrada Família. Muitos padres aproveitam essa festa para falar sobre a importância da família, sublinhar os valores morais e mostrar como a família de Jesus é modelo para as nossas famílias. No entanto, esse tipo de fundamentalismo superficial carece de base histórica. Jesus viveu em uma cultura social totalmente diversa da nossa, na qual a família era uma instituição muito diferente do que conhecemos hoje.
Mesmo considerando as relações familiares que atravessam todas as culturas, a família de Jesus não seria um exemplo adequado aos valores sociais vigentes. Basta lembrar que Jesus nasceu como filho natural. Os evangelhos afirmam que Maria concebeu por obra do Espírito Santo. Em uma cultura patriarcal, os textos pouco falam sobre José, a quem Jesus era atribuído como filho. Seja como for, desde adolescente, o comportamento de Jesus com seus pais era peculiar.
O evangelho diz que Jesus “lhes era submisso”. Entretanto, em vários momentos, Ele entrou em conflito com seus pais e sua família. Já adulto, enquanto atuava na Galileia, os evangelhos relatam que sua família tentou prendê-lo, como se estivesse louco (Mc 3,21). Na ocasião, Jesus reagiu dizendo aos discípulos: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?”. Ele continuou: “São todas as pessoas que ouvem a Palavra de Deus e a colocam em prática” (Mc 3,21.34).
O evangelho deste domingo (Lucas 2,41-52) narra uma cena de forma simbólica. Na tradição judaica, aos 13 anos, o menino começava a participar da vida comunitária, realizando o Bar-Mizvah, rito de inserção na sinagoga e na comunidade. Jesus, entretanto, antecipa esse momento: com 12 anos e começa a se emancipar dos pais, pois participa da peregrinação a Jerusalém para a Páscoa e se envolve em diálogos com os professores da Bíblia.
Como todos os judeus fiéis, os pais de Jesus iam ao templo para oferecer sacrifícios. Jesus, porém, vai ao templo para “se ocupar das coisas que são de meu Pai”. Mas, conforme o evangelho, essas coisas não se referem ao culto, mas ao estudo da Torá, realizado em uma sinagoga próxima ao templo.
A cena mostra Jesus ouvindo e interrogando os mestres da lei, o que revela sua ligação com a tradição de Israel e seu interesse em aprofundá-la. Em nenhum momento o texto diz que Jesus ensinava os doutores da lei; ele perguntava e ouvia. O texto relata que os mestres ficaram espantados com a inteligência de suas perguntas.
No templo, chamado “casa do meu Pai”, Jesus antecipa as futuras discussões que terá com os doutores da lei, especialmente na última Páscoa, quando será condenado à morte em Jerusalém.
O texto também destaca que Maria e José buscaram Jesus por três dias até encontrá-lo. Esse episódio dos 12 anos antecipa o mistério da Páscoa de Jesus adulto, quando os seus também o perderão porque Ele morrerá e será reencontrado ao terceiro dia, ressuscitado.
Naquela primeira Páscoa, quando Maria e José o encontram, reclamam que Ele tenha ficado em Jerusalém sem avisar. A resposta de Jesus é incisiva: “Vocês não sabiam que devo me ocupar das coisas de meu Pai?”.
Ao retornar para a Galileia, longe do templo, o texto diz que o menino cresce em sabedoria, idade e graça diante de Deus e das pessoas. Essa relação íntima com Deus é um mistério que até mesmo seus pais têm dificuldade de compreender.
Quantas vezes nós também temos dificuldade de perceber o maravilhoso que ocorre no cotidiano?
Por trás desse relato, provavelmente está a experiência das primeiras comunidades cristãs das décadas de 70 e 80 do primeiro século, marcadas por tensões entre os discípulos e aqueles que se apresentavam como “parentes” de Jesus. Essa referência a Maria e a José se incluiria, talvez, nesse registro. É como se dissesse que quem procura Jesus, como se fosse com direito de parente, não o encontra profundamente. A segunda carta aos Coríntios nos lembra: “Mesmo que tivéssemos conhecido Cristo segundo a carne, agora já não o conhecemos assim. Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura” (2 Cor 5,16).
Para encontrar Jesus, é preciso buscá-lo de forma nova, desapegando-se de interesses egoístas e compreendendo que a verdadeira família é ampla e universal.
É a primeira vez que o evangelho apresenta uma atitude independente e consciente de Jesus. Como se, com um gesto simbólico, o adolescente Jesus quisesse romper com vínculos familiares opressivos. Ele, contudo, não corta os laços afetivos. Tanto que o evangelho termina dizendo que Ele voltou com seus pais a Nazaré e lhes era submisso.
Na época em que Lucas escreveu esse evangelho, o templo de Jerusalém já havia sido destruído pelo exército do Império Romano, durante a Guerra Judaica, entre os anos de 66 e 70. O evangelho atribui a Jesus a afirmação de que Ele deveria se ocupar das coisas que são do “meu Pai”. Essa mesma expressão é usada em outros momentos para descrever a missão de salvar o mundo. No domingo da Páscoa, por exemplo, aos discípulos de Emaús, Jesus Ressuscitado afirma: “Era preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória”. No evangelho de hoje, a expressão é a mesma: “É preciso. Devo…”. Trata-se da preocupação de conectar as coisas do Pai, ou seja, o projeto divino, com a realidade do mundo e sua libertação.
Se quisermos ser autênticos(as) discípulos(as) de Jesus, devemos compreender que, para nós, a Sagrada Família é toda família humana, em todas as suas formas e configurações. Segundo pesquisas acadêmicas, existem atualmente mais de 40 tipos de famílias no Brasil. Não há apenas a “família tradicional patriarcal e machista”. É essencial que cada pessoa humana se torne como nosso familiar, mais próximo do que se fosse nosso próprio sangue. Isso não é natural nem instintivo, e, por isso, é difícil. No entanto, isso não significa desprezar ou diminuir o valor dos laços familiares. Pelo contrário, como afirma a Regra de Taizé para os irmãos da comunidade: “A qualidade do seu amor a seus pais e familiares revela a profundidade do seu amor a todas as pessoas”. Não podemos absolutizar nossa família nuclear, de sangue, e colocá-la como superior às outras. Com um olhar mais profundo, precisamos compreender que pertencemos a uma família muito maior: a humanidade, incluindo todos os seres vivos. Fazemos parte de uma fraternidade universal, como nos ensina Francisco de Assis.
O amor aos mais íntimos nos abre e nos ajuda a viver o amor da forma mais universal possível. Jesus fala da “casa do meu Pai”. Essa casa de Deus não é um templo, seja de que religião for. É o planeta Terra, nossa Casa Comum, e também cada corpo vivo, templos da morada divina. Este evangelho nos confirma no caminho do aprofundamento de uma espiritualidade sócio-política libertadora. A fé deve nos levar a cultivar o insondável mistério do infinito amor que nos envolve.
Lemos neste evangelho: “Maria guardava essas coisas no seu coração”. Isso significa que ela cultivava a esperança messiânica no íntimo do seu ser, mas essa esperança se expressa no social e na transformação de nós mesmos e do mundo.
Na música popular brasileira, Chico Buarque de Holanda tem uma composição que ele traduziu e adaptou do italiano (“Gesù Bambino”), intitulada “Minha História”. Aparentemente, nada tem a ver com a história do evangelho, mas narra o desacerto e a dificuldade de reconhecer a sacralidade de cada pessoa em situações de marginalidade humana e comportamentos diferentes do que a sociedade considera “normais”. Veja se, ao ler e lembrar dessa música, você a associa de alguma forma ao evangelho que comentamos hoje.
Minha História (Gesù Bambino)
Chico Buarque
Minha História (Gesù Bambino)
Chico Buarque
Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, laiá, laiá, l
Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto, laiá, laiá, laiá,
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor, laiá, laiá, laiá,
Minha história e esse nome que ainda hoje carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá, laiá