A Ética das Relações na Comunidade do Evangelho (Lc 6,39-45)
Neste VIII Domingo do Tempo Comum (Ano C), o texto do Evangelho lido nas comunidades conclui as palavras de Jesus no discurso da planície. Essa passagem traz uma orientação específica para as pessoas que exercem a função de “guias” dentro das comunidades. Ali, Jesus instrui os responsáveis pelas comunidades, mas a teoria do discurso não trata da relação com Deus. Não há nenhuma menção ao culto ou à oração. A instrução é sobre a ética nas relações interpessoais — tanto consigo mesmo(a) quanto com os outros.
Esse trecho do Evangelho é construído a partir de sentenças que Jesus provavelmente disse em diferentes contextos. O evangelista reuniu esses ensinamentos em um único discurso, interligando-os por meio de palavras-chave, como “medida” (v. 38), “olho” (v. 39), “árvore” (v. 43-44), “boca”, “casa” e outros.
O essencial é a prática. A ética se verifica a partir dos frutos, ou seja, dos resultados concretos que ela produz (cf. Tg 3,12; Lc 13,6-9). Esse princípio já estava presente nos ensinamentos judaicos e nos livros sapienciais, onde a pessoa justa é comparada a uma árvore frutífera, irrigada pelas águas divinas (cf. Salmos 1 e 92,13-14; Ct 2,1-3; Eclo 24,12-27).
Atualmente, no Brasil, de maneira injusta e criminosa, há grupos católicos, evangélicos e pentecostais que acusam os cultos afro-brasileiros e indígenas de idolatria ou mesmo de demonismo. No entanto, se aplicarmos o planejamento do Evangelho e analisarmos os frutos dessas práticas religiosas, veremos que as comunidades de espiritualidade afrodescendente promovem a união entre as pessoas em meio às adversidades socioeconômicas. Elas fortalecem a consciência da dignidade humana das populações negras e ajudam-nas a resistir à violência e ao racismo estrutural da sociedade. Se os frutos são esses, como se pode julgar mal a qualidade dessas comunidades? A intolerância religiosa é inaceitável.
Talvez, nos primeiros tempos do cristianismo, o texto do Evangelho de hoje fez parte de uma espécie de “diretório” ou “carta de orientações” para aqueles que vinham de outras religiões e queriam se integrar às comunidades cristãs. São normas éticas e não doutrinais. Nessas orientações de Jesus, a preocupação central é a ética nas relações comunitárias, sobretudo para aqueles que exercem funções de coordenação e animação do grupo.
No Evangelho de Mateus, Jesus afirma que os fariseus e escribas do templo de Jerusalém se comportam como “guias cegos”. Isso mostra que a comunidade de Mateus julgava os escribas e os fariseus do Judaísmo rabínico, dominantes na Palestina nesse tempo. Já no Evangelho de Lucas, por volta do ano 80, essa advertência de Jesus é aplicada aos próprios discípulos, ou seja, aos membros da comunidade cristã, principalmente aos ministros, diáconos, padres e bispos. Até hoje corremos o risco de pensar que os cegos são sempre os outros e não nós mesmos. Se alguém acredita que tem total clareza sobre si mesmo, na verdade, está duplamente cego — pois nem sequer enxerga a própria cegueira. No Evangelho de João, no episódio do cego de nascença, Jesus diz que, se os fariseus assumirem sua cegueira, não teriam culpa. Mas, como se vangloriam e insistem que enxergam perfeitamente, sua cegueira se torna ainda mais grave (cf. Jo 9,39-41).
Quase todas as tradições espirituais ensinam que um elemento fundamental da espiritualidade é o autoconhecimento. Segundo o Evangelho de Tomé, um texto cristão do século II, Jesus disse: “Quem conhece todas as coisas, mas não conhece a si mesmo, de fato, não conhece nada” (n. 67). Essa é uma afirmação radical e corajosa. Santa Teresa de Ávila dizia que “um dia de humilde conhecimento de si mesmo é melhor do que mil dias de oração”. Na Idade Média, o Mestre Eckhart ensinou: “Não se pode conhecer a Deus sem antes conhecer a si mesmo”.
Antigamente, monges e monjas se definiam como pessoas que habitavam consigo mesmo. No livro Diálogos, o Papa Gregório Magno descreve São Bento de Núrsia como um homem que “habitava consigo mesmo”. Essa definição pode nos inspirar na busca por uma espiritualidade autêntica: aprender a habitar em nós mesmos(as). Quem trabalha por justiça social e transformação do mundo não pode ignorar essa dimensão interior e pessoal da mudança. Em meio a toda a sua luta não violenta contra o colonialismo e pela independência da Índia, Mahatma Gandhi: “Seja você a mudança que deseja ver no mundo”. Jesus, por sua vez, diz algo semelhante: “Primeiro, tira a trave do teu olho, para depois tirar o cisco do olho do teu irmão”.
No Evangelho, Jesus vai direto ao ponto essencial: todos nós temos pontos cegos. Carregamos dentro de nós sentimentos e tendências que nem sempre conseguimos enxergar. Exigir dos outros aquilo que nós mesmos não cumprimos é hipocrisia e falsidade. O hipócrita é aquele que finge ser o que não é. Jesus nos convida a viver com coerência.
A transformação começa por nós mesmos. Cada um(a) deve buscar mudar o próprio coração antes de cobrar mudanças nos outros. O modelo a seguir é o próprio Jesus: “Por que me chamais ‘Senhor, Senhor’, e não fazeis o que eu digo?”. Ele deixa claro que cumprir sua palavra é construir a casa — tanto a interior, que é o nosso ser mais profundo, quanto a social, que é a comunidade nova — sobre a rocha, que é a Palavra de Deus.
Na maioria das tradições espirituais, a busca pela veracidade interior e a luta por evolução pessoal são aspectos essenciais da caminhada. Esse é um desafio presente na educação, na política, nas Igrejas e nas religiões.
O Evangelho de hoje nos traz uma boa notícia de que sempre podemos retomar o caminho da unificação interior e da coerência. A Igreja Católica, em todo o mundo, se depara com escândalos nos meios clericais: casos de abuso sexual, escândalos morais como a pedofilia, corrupção financeira e, sobretudo, desumanidade nas relações eclesiais praticada por ministros, na maioria das vezes, extremamente arrogantes, homofóbicos e severos com os pecados dos outros. E se levantássemos o escândalo da desumanidade que ainda vigora em certas formas de tratar os outros nos conventos e nos ambientes do clero? Para Jesus, um dos maiores escândalos era ver seus discípulos disputando entre si por poder e prestígio.
Que o Espírito nos ilumine no caminho da simplicidade e da entrega de nossas vidas ao serviço do amor. Que nossa competição seja apenas para ver quem é mais capaz de amar e se doar!
Caçador de Mim
Milton Nascimento
Por tanto amor,
Por tanta emoção,
A vida me fez assim.
Doce ou atroz,
Manso ou feroz,
Eu, caçador de mim.
Preso a canções,
Entregue a paixões
Que nunca teve fim,
Vou me encontrar
Longe do meu lugar,
Eu, caçador de mim.
Nada a temer, senão o correr da luta.
Nada a fazer, senão esquecer o medo.
Abrir o peito à força, numa procura,
Fugir às armadilhas da mata escura.
Longe se vai
Sonhando demais,
Mas onde se chega assim?
Vou descobrir
O que me faz sentir,
Eu, caçador de mim.