Outro modo de amar é possível – Lc 6, 27-38
Neste 7º Domingo do Tempo Comum (Ano C), o evangelho lido nas comunidades, Lucas 6,27-38, traz uma das palavras mais desafiadoras de Jesus. Ele convida todas as pessoas ao amor gratuito, ecumênico e inter-religioso, aberto a toda a humanidade. Diz que para sermos seus discípulos e discípulas, precisamos abrir nossos corações e nossas vidas para amar como Deus ama e nos tornarmos como Ele é: puro Amor e Misericórdia.
Aparentemente, esse chamado parece impossível. Vivemos em um mundo dominado pela cultura do comércio, no qual há pouco espaço para a gratuidade e para o dom. Jesus nos convida a viver um novo estilo de justiça, que supera a lógica da reciprocidade quantitativa e as convenções sociais que limitam o amor àqueles que nos amam. Quem deseja seguir Jesus precisa aprender a amar como Ele experimentou em sua vida: com o próprio amor divino que habita em nós. A meta é se assemelhar a Deus. O que caracteriza o Pai é a doação total e desinteressada. “O Pai é bom para os ingratos e maus”. É isso que está por trás da ordem: “Amem seus inimigos e façam o bem aos que odeiam vocês” (Lc 6,27).
Nessas palavras de Jesus, há quem distinga mandamentos e conselhos. Segundo essa visão, Jesus dá mandamentos quando fala em “vós” e conselhos quando concretiza esses mandamentos e fala em “tu”. Os mandamentos são universais e permanentes; já os conselhos dependem do contexto. O mandamento é: “Amai os inimigos”. O conselho seria exemplificado por casos concretos nos quais isso pode se realizar, como: “Dá a quem te pede”, que não deve ser tomado ao pé da letra, mas compreendido a partir do contexto social e da realidade.
Geralmente, o que se chama de “mandamento” soa mais como uma proposta de vida: “Fazei o bem”, “Orai pelos inimigos”. Isso explica como seria o amar que Jesus nos propõe. No grego, o verbo “agapaô” não é sinônimo de “fileô”. O primeiro não expressa um amor sentimental, de simpatia ou amizade, mas o termo que o Evangelho usa significa um comportamento de solidariedade, perdão e abertura interior. Jesus não ordenou que tivéssemos afeição ou carinho por exploradores, políticos opressores, juízes corruptos ou fascistas. O que Ele propõe é que respeitemos a dignidade humana dessas pessoas, mesmo que sejam bandidos e suas ações demonstrem o contrário de pessoas conscientes da sua humanidade. Nada do que fazem pode nos levar a abandonar o caminho do amor e da justiça. Jamais podemos aceitar pautas de discriminação social, odiar alguém ou desejar o mal a quem quer que seja.
O educador Paulo Freire dizia que devemos amar todas as pessoas, mas não do mesmo jeito. Devemos amar as pessoas injustiçadas e empobrecidas nos colocando solidariamente ao lado delas, lutando com elas e a partir delas por seus direitos. E devemos amar as pessoas opressoras fazendo o possível e o impossível para retirar delas as armas da opressão. Por exemplo, o latifúndio é uma arma de exploração nas mãos do latifundiário. Logo, lutar pela partilha e socialização da terra é também uma questão espiritual querida pelo Evangelho de Jesus Cristo.
O amor crítico e lúcido aos inimigos significa, em qualquer situação, jamais negar a dignidade humana deles e, em nome dessa dignidade, lutar para que eles a vivam plenamente. Quanto às concretizações do “dar a outra face”, podemos refletir com a canção de León Gieco, imortalizada pela voz de Mercedes Sosa e gravada em português por Beth Carvalho:
“Eu só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Pois não posso dar a outra face
Se já fui machucada brutalmente”.
Jesus falou sobre dar a outra face, mas Ele mesmo, ao ser agredido, não o fez literalmente. Pelo contrário, questionou a injustiça ao perguntar: “Por que me bates?” (Jo 18,23).
Na América Latina, aprendemos que amar os inimigos significa impedir, por todos os meios pacíficos, que eles continuem oprimindo e ameaçando. O amor aos inimigos nos obriga a defender as comunidades da opressão deles e a impedir que os mais vulneráveis vivam situações de risco. Esse amor nos manda lutar pacificamente contra os opressores, para libertar os que são oprimidos e, ao mesmo tempo, ajudar o próprio opressor a se libertar dessa condição.
No século XX, diversas pessoas em diferentes continentes buscaram atuar em movimentos de libertação com base nessa intuição de respeito e amor crítico aos inimigos. No contexto não cristão, Gandhi deu exemplo disso ao lutar contra o Império Britânico. No âmbito das Igrejas, recordamos figuras como o pastor Martin Luther King e, no Brasil, Dom Hélder Câmara.
No Natal de 1967, o pastor Martin Luther King pregava:
“Nunca vamos abrir mão da determinação de eliminar todos os vestígios de discriminação e segregação neste país. No entanto, nesse processo, não podemos nos despojar do nosso privilégio de amar. Já vi tanto ódio que também senti a tentação de odiar. Vi ódio nos rostos de delegados, de cidadãos brancos, de conselheiros e de membros da Ku Klux Klan no sul dos EUA. Deparei-me com tanto ódio que, por vezes, desejei odiar. Mas, sempre que isso acontece, repito para mim mesmo que o ódio é uma carga pesada demais para suportar”.
Em um campo de concentração nazista, a jovem judia Etty Hillesum (28 anos) escreveu em seu diário:
“Os alemães nazistas podem tudo, menos nos forçar a odiá-los. Isso eles não podem fazer. Não podem roubar nossa humanidade”.
Compreender a dor de quem nos agride nos ajuda a perdoar e a não desejar o mal, mesmo quando temos o direito de nos defender.
O padre André Chouraqui traduz Lucas 6,36 “Sejam misericordiosos como o Pai” por “Sejam matriciais”, isto é, “uterinos”. Esse amor remete ao amor que uma mãe tem pelo filho em seu ventre. É a característica do Deus que se revelou na Aliança do Sinai (cf. Ex 34,6-7). Esse versículo do evangelho de Lucas corresponde ao que Mateus expressou de outra forma: “Sejam perfeitos(as) como o Pai do céu é perfeito” (Mt 5,48). Enquanto Mateus fala em perfeição, Lucas traduz essa perfeição pela misericórdia, ou seja, um amor gratuito e total. Como Deus que permanece fiel a nós, mesmo quando somos infiéis a Ele.
Infelizmente, em nossos dias, prosperam grupos cristãos que pregam uma fé excludente, apresentando Deus como cruel, violento, discriminador e legitimador de injustiças. Diante disso, devemos viver e testemunhar prática comunitária e a fé de forma oposta a esse “cristianismo do ódio e do desamor”, convictos de que, como nos ensinou São Francisco de Assis: “Só o amor constrói”.