Olhar fixo na estrela-guia e os pés no caminho – Lc 9,28-36
O Evangelho deste 2º Domingo da Quaresma nos apresenta o conhecido relato da Transfiguração de Jesus. Na narrativa de Lucas (9,28-36), diferentemente dos outros evangelistas, a palavra “transfiguração” não é mencionada. Lucas, escrevendo para comunidades de cultura greco-romana, já tentadas ao dualismo espiritualista, enfatiza a humanidade de Jesus. Por isso, destaca que é o rosto de Jesus que se transforma, e só depois suas vestes tornam-se resplandecentes. O evangelho nos diz que essa mudança acontece justamente quando Jesus está em oração, na montanha.
Lucas faz questão de dizer que Jesus não se “transfigura” isoladamente, mas em diálogo com Moisés e o profeta Elias – comunitariamente – e não em um contexto paradisíaco, mas enquanto conversavam “sobre o êxodo que se consumaria em Jerusalém” (Lc 9,31). Ou seja, essa revelação acontece em meio a graves conflitos, que incluíam ameaças de morte, a opressão do Império Romano, a exploração econômica e a cumplicidade do poder religioso. É nesse contexto de dor e luta que Jesus “brilha” e revela sua mais profunda humanidade e sua dimensão divina.
Em diversas tradições espirituais, especialmente na simbologia oriental, a montanha representa a maior conquista do ser humano sobre si mesmo, a elevação da própria consciência. Na Bíblia, desde as manifestações divinas no Monte Sinai, a montanha é o local da aliança entre Deus, a humanidade e a criação (a natureza). É na montanha que Deus diz o seu nome e revela a sua intimidade e é nesse ambiente sagrado que Jesus, acompanhado de Moisés e Elias — figuras centrais da Antiga Aliança —, assume sua missão profética e se prepara para cumprir seu êxodo, sua páscoa, isto é, sua morte, em Jerusalém.
O evangelho insiste que isso ocorre oito dias após Jesus anunciar aos discípulos e discípulas que assumiria a cruz e tudo o que isso comportava. Acostumados a ver Jesus na simplicidade do cotidiano, os discípulos agora o contemplam sob uma nova perspectiva. Porém, não compreendem como alguém que se deixa prender, torturar e matar pode cumprir a sua missão salvífica. Nesse momento, Jesus permite que eles vislumbrem sua glória, onde Ele será envolvido pela luminosidade da presença divina e receberá o testemunho do Pai, onde o próprio Deus confirma: “Este é o meu Filho amado. Escutem o que Ele diz” (Lc 9,35). A pergunta que Jesus havia feito anteriormente – “Quem sou eu?” – recebe agora a resposta direta do Pai.
É significativo que esse testemunho de Deus aconteça justamente quando Jesus anuncia sua ida a Jerusalém, onde será preso e morto pelos poderes da religião, da economia e da política. É ao se dispor à marginalidade, optando por doar sua vida ao absurdo da cruz pelo povo, para testemunhar um caminho de libertação, que Jesus se revela como o Messias de Deus. Quem doa a vida pelo próximo viverá para sempre; quem tenta retê-la egoisticamente, perde-a e morre. Deus nos mostra que é no caminho da cruz que Jesus manifesta sua identidade de Filho amado, revelando-nos o verdadeiro rosto divino. Não um Deus do poder, da ordem ou do império, mas o Deus da aliança, da libertação e da vida.
A presença da nuvem sobre a montanha sinaliza que toda a criação é envolvida pela presença divina. A Campanha da Fraternidade de 2025, que reflete sobre Ecologia Integral, nos lembra que somos chamados(as) à conversão ecológica, intensificando nossa comunhão com Deus na relação com a Mãe Terra e com toda a natureza. A luta pelos direitos da natureza é um compromisso inadiável.
A cena da revelação da presença divina na pessoa de Jesus no alto do monte serve aos discípulos e discípulas como um olhar sobre a meta que precisamos ver de modo mais claro para enfrentar os caminhos difíceis do cotidiano da vida. Este evangelho nos convida a acreditar não somente que Deus revestiu Jesus crucificado de sua glória, mas que, em Jesus, Deus revela seu próprio jeito de ser: um Deus que sofre conosco, que assume nossas cruzes diárias e que nos convida à missão de transformar o mundo em um lugar mais justo e fraterno.
Poema de Rumi, místico islâmico medieval:
“Quando busco o meu coração, o encontro em Ti.
Quando procuro a minha alma, encontro-a entre os Teus cabelos.
Quando, sedento, me avizinho de uma fonte para beber,
Mesmo no pequeno espelho d’água, vejo o Teu rosto refletido.
Nada me está mais vizinho que o Amado,
Mais vizinho a mim do que a minha própria alma.
E d’Ele não me recordo jamais,
Pois a lembrança só existe para quem não está”.