A expectativa que antecipa o que se espera (Lc 21,25-28.34-36)
No Brasil de algumas décadas atrás, era comum ouvir, em passeatas e manifestações populares por direitos, o grito de luta: “O povo unido, jamais será vencido!”. Nos dias atuais, muitos se perguntam por que esse brado quase desapareceu das ruas. Será que a sucessão de golpes e as perdas sofridas pelos movimentos populares nos últimos anos geraram uma maior prudência na expressão de nossa confiança na vitória?
No início deste século, os primeiros Fóruns Sociais Mundiais adotaram o tema: “Um outro mundo é possível”. Já em 2016, no Fórum Social de Montreal, a frase evoluiu para: “Outro mundo é necessário. Juntos, podemos torná-lo possível”.
Comparando as duas formulações, nota-se um cuidado em redimensionar nossa esperança, ajustando-a à realidade. Essa mesma tensão foi vivida pelas primeiras comunidades cristãs no século I, como se reflete nas leituras deste primeiro domingo do ano litúrgico.
Neste ano C, no 1° Domingo do Advento, iniciamos o novo ano litúrgico com o evangelho de Lucas, que nos acompanhará em 2025. A liturgia nos propõe um trecho que narra palavras de Jesus em Jerusalém, antes de sua prisão (Lc 21, 25-28 e 34-36). Curiosamente, não começamos pelo início do evangelho, mas pelo fim, que aponta para a meta da história: a realização do projeto divino no mundo.
A tradição das Igrejas fala da “segunda vinda de Cristo”. Contudo, como cremos que Ele já está presente entre nós e em nós, essa expressão pode soar inadequada e não há sentido em falar que Ele voltará. O termo grego que o Evangelho chama de “parusia” refere-se à manifestação plena da presença permanente de Cristo em nós, no mundo e em todas as criaturas. É uma mensagem que precisamos traduzir para a nossa cultura contemporânea.
Provavelmente, as comunidades de Lucas viveram depois dos anos 80 do primeiro século e pertenciam à segunda geração cristã. Lucas pode ter sido o único autor do Novo Testamento não judeu. Parece que nasceu na Síria (Antioquia) e o seu evangelho surgiu, ou naquela região ou, seja como for, a partir da cultura grega. Neste caso, o evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos – 25% dos textos neotestamentários – são os únicos escritos do Novo Testamento que nasceram na Europa.
As comunidades de Lucas, formadas na década de 80 do primeiro século, enfrentaram a frustração de uma expectativa não realizada. A primeira geração cristã acreditava estar vivendo os últimos momentos da história e que o Reino de Deus se concretizaria imediatamente. O ano 100 estava se aproximando e muitos diziam “de 100 não passará!”, como muitos disseram que de 1.000 ou de 2.000 não passariam o mundo. No entanto, o tempo passava e nada ocorria. À medida que o tempo passava e o fim esperado não chegava, a comunidade de Lucas teve de lidar com isso: ajudar os irmãos e as irmãs a reformular a esperança, sustentando a fé no projeto divino sem vinculá-lo ao encerramento da história e a vitória final.
Concretamente, o que significa para nós, hoje, celebrar o Advento e esse tempo de Natal a partir de uma consciência histórica e de uma crítica da realidade em perspectiva libertadora? Advento de quem, do que e como? O evangelho que hoje escutamos e partilhamos, nos convida a olhar para a história de forma mais ampla e profunda, apontando para a figura do Filho do Homem que simboliza uma humanidade renovada e, provavelmente, veio do sincretismo da religião cananeia e era comum em todo o Oriente Médio. Traduzia-se no mito de um deus humano que viria reordenar o mundo. Inspirada no livro de Daniel (Dn 7), essa imagem remete ao Cristo Ressuscitado, a humanidade transformada por Deus.
Atualmente, vivemos em um mundo no qual parece que o sol e a lua se abalam e o céu ameaça desabar sobre nossas cabeças, como pensavam os antigos gauleses de Asterix e como temem os Yanomami (lembremos o livro do Davi Kopenawa: A queda do céu). Estão cada vez mais frequentes e letais as crises ecológicas, eventos extremos e injustiças sociais. Se focarmos na primeira parte do evangelho de Lc 21,25-26, inicialmente podemos ser tomados pelo medo, mas é preciso ler atentamente nas linhas e nas entrelinhas e perceber que a finalidade do evangelho é alimentar a esperança em meio às tribulações.
A boa notícia do evangelho é que em meio a tudo isso, acima das nuvens, portanto para além da zona de conflito, aparece a figura de uma humanidade renovada. Originalmente, o Filho do Homem é isso: o homem novo, a mulher nova, representada pelo Cristo Ressuscitado. Essa humanidade nova vem de Deus (vem sobre as nuvens), mas tem como tarefa reanimar as pessoas e as comunidades, presas pela desesperança e nos conduzir na luta contra todas as opressões. O evangelho não semeia medo, mas esperança e põe na boca de Jesus a palavra: “Quando virem acontecer essas coisas, se levantem, ergam a cabeça. É a libertação de vocês que se aproxima” (Lc 21, 28).
Essa promessa nos reanima, mas temos de aprender mais e mais a como nos manter em expectativa e na teimosia da vigilância, mesmo se essa realidade nova parece tardar. Este evangelho nos desafia e insiste a manter duas atitudes fundamentais: sobriedade e oração.
A sobriedade é uma postura que hoje nos é pedida como resposta diante do consumismo e do modelo de desenvolvimento capitalista que ecologicamente é insustentável e ameaça o planeta. Significa viver de forma simples e austera, centrando-se no essencial: sobriedade no ter e no ser.
A oração tem, hoje, o desafio de refazer uma relação com Deus que não seja apenas rezas e sim postura de comunhão e de intimidade com o Divino em nós, nas pessoas e no universo. Uma coisa é orar no âmbito de uma religião ritual e de um Deus que parece narcisista e cioso de louvor e de bajulação. O outro é a oração em uma perspectiva profética, na qual o importante é escutar o Espírito presente nas pessoas e no coração do universo e e traduzir essa comunhão em ações de amor e justiça no mundo. É penetrar na intimidade do Amor Divino. Isso se dá na relação social com as outras pessoas e com a natureza.
É essa a postura de amor resiliente, que não desiste de esperar e que antecipa em cada momento a certeza da vitória, mesmo nas lutas mais difíceis. É o que explica a resistência de mais de 500 anos de luta dos povos originários e a sobrevivência que teima em ser feliz das comunidades negras e de suas culturas. A memória de tanto sangue derramado e de tanta dor não nos paralisa, mas ao contrário, nos inspira a perseverar e nos estimula à teimosia da luta que sustentamos até o encontro definitivo e a vitória da Vida, já antecipados em cada encontro nosso, em cada abraço e no amor que canta o dia de graça que já vivemos desde agora.
Nos acampamentos e assentamentos de reforma agrária, nos territórios indígenas e quilombolas e em muitas ocupações urbanas nas periferias, há sinais vivos de que “outro mundo é possível”. Nesses espaços, é possível experimentar que no meio de tanta opressão e exploração, existem pessoas e comunidades que estão testemunhando de cabeça erguida, com alegria no olhar e muito amor no coração, a construção de outro tipo de relações humanas e sociais que antecipam o Reino de Deus e apontam que outro mundo necessário é possível e está sendo construído de baixo para cima, a partir dos últimos da sociedade. Eis o espírito do advento: ventos natalinos fazendo irromper o divino no humano.
Cantemos juntos, com Zé Vicente, nosso irmão de caminhada, em comunhão com todos que lutam e esperam:
Se é pra ir a luta, eu vou!
Se é pra tá presente, eu tô!
Pois na vida da gente o que vale é o amor (bis)
É que a gente junto vai
Reacender estrelas vai
Replantar nosso sonho em cada coração
Enquanto não chegar o dia
Enquanto persiste a agonia
A gente ensaia o baião
Lauê, lauê, lauê, lauê
É que a gente junto vai
Reabrindo caminhos vai
Alargando a avenida pra festa geral
Enquanto não chega a vitória
A gente refaz a história
Pro que há de ser afinal
Lauê, lauê, lauê, lauê
É que a gente junto vai
Vai pra rua de novo, vai
Levantar a bandeira do sonho maior
Enquanto eles mandam, não importa
A gente vai abrindo a porta
Quem vai rir depois, ri melhor
Lauê, lauê, lauê, lauê
Esse amor tão bonito vai
Vai gerar nova vida, vai
Cicatrizar feridas, fecundar a paz
Enquanto governa a maldade
A gente canta a liberdade
O amor não se rende jamais Lauê, lauê, lauê, lauê
Que a nossa esperança se renove a cada dia, sustentando-nos na certeza de que o amor não se rende jamais!