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Reflexão ao Evangelho do Batismo do Senhor (Ano C) por Marcelo Barros

O êxtase místico em meio à inserção sócio-política – Lc 3,15-16.21-22

Neste domingo, celebramos a festa do Batismo de Jesus Cristo, nosso Senhor. Neste ano C, o evangelho proclamado é Lucas 3, 15-16 e 21-22. O texto tem duas partes. Na primeira, o evangelho relata o testemunho de João Batista, já ouvido no 3º domingo do Advento, e, na segunda, descreve a experiência espiritual vivida por Jesus ao ser batizado. O evangelho de Lucas não se detém em contar detalhadamente o fato. Refere-se ao batismo de Jesus como algo já ocorrido e afirma: “Enquanto todo o povo era batizado e Jesus, batizado, estava em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele, como se fosse em forma corpórea, como uma pomba. E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho amado. Em ti está o meu agrado” (v. 21-22).

Contar que o profeta João Batista batizou Jesus significava afirmar que Jesus se tornou discípulo de João, algo que o evangelista não quer afirmar. Por isso, primeiro, ele narra que João Batista foi preso e só depois fala que Jesus foi batizado. Assim, a missão de Jesus se inicia quando a de João se encerra. A profecia de Jesus continua a de João. Portanto, no batismo, Jesus se insere no povo como profeta e é nesse momento que Ele recebe o Espírito.

O termo “batismo” é a tradução do grego para “mergulho” ou “inserção”. Comumente, diz-se que o batismo de João era para o perdão dos pecados. Na nossa cultura, a noção de pecado é moral. Na cultura judaica antiga, o pecado era social, indicando situações que afastavam a pessoa do templo e da pureza ritual. Pobres e endividados eram considerados pecadores, pois, para sobreviver, ultrapassavam os limites da lei religiosa. Eles sentiam vergonha e culpa, um sentimento imposto pelos sacerdotes que definiam quem era puro e quem era impuro. Relacionar-se com estrangeiros ou depender deles para sustento também tornava alguém impuro. No entanto, muita gente fazia isso para sobreviver. Dependiam dos romanos e estrangeiros ricos para ganhar o seu sustento. Mulheres eram consideradas impuras durante a menstruação ou após o parto, e açougueiros e vendedores de carne, por tocarem cadáveres, também eram marginalizados. Assim, os pecadores eram, em geral, os mais pobres e marginalizados socialmente. Afirmar que o batismo de João era para perdão dos pecados significava propor a libertação das exclusões criadas pelas comunidades religiosas em nome de Deus.

Ao receber o batismo de João, Jesus adere à cultura religiosa popular do seu tempo. Em várias regiões do Brasil, a espiritualidade afrodescendente e as pajelanças indígenas incluem banhos de cheiro e ritos de purificação espiritual. Infelizmente, muitos católicos e evangélicos tradicionais veem isso com preconceito, assim como os religiosos do templo de Jerusalém viam o batismo de João como um rito popular desvinculado da religião oficial judaica. Contudo, Jesus assumiu esse rito e foi a partir do batismo recebido pelo profeta João que Jesus se revelou como profeta.

Também devemos reconhecer nos ritos afrodescendentes e nos mergulhos das espiritualidades dos povos originários, sinais do amor divino, como sacramentos naturais do apelo divino à nossa vida. O batismo é um rito de passagem que pode ser realizado de diversas formas, desde que expresse aliança, compromisso e comunhão com o que se está celebrando.

Ao ser mergulhado no Jordão, Jesus assume a vocação de profeta. O Jordão era o rio que faz fronteira entre o deserto e a terra prometida. A Bíblia conta que, antigamente, para entrar na posse da terra, o povo hebreu precisou atravessar o rio Jordão. Ao ser batizado, Jesus retoma esse gesto antigo do povo no caminho de sua libertação. Assim o batismo de João não era apenas um ato de espiritualidade individual, mas evocava a luta social por libertação, unindo-a à novidade de uma aliança nova, um diálogo íntimo com o Pai através do Espírito.

No evangelho de Lucas, João Batista afirma que ele batiza com água, mas o Messias batizará com o Espírito Santo. Enquanto João Batista é introduzido de forma solene no começo do capítulo, Jesus entra na narrativa quase anonimamente: “quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também…” Ao ser batizado junto com o povo, Jesus se insere na condição de “pecador social” (marginalizado pela religião hegemônica e considerado impuro). É nesse batismo que Jesus recebe do Pai a confirmação de sua missão e a consciência de sua filiação messiânica: “Tu és o meu Filho”. Ao identificar-se com os pobres marginalizados pela religião, Jesus ouve Deus lhe dizer: “Tu és o meu filho muito amado”.

Pela primeira vez, Jesus ouve a voz do Pai no mais profundo de si: “Tu és o meu filho muito amado”. Essa experiência mística marcante ocorre quando Ele assume a missão de profeta da transformação social. Ao aderir à profecia de João e substituí-lo quando este é preso pelas autoridades políticas, Jesus escuta a voz do Pai que o confirma em seu caminho profético. É essa voz do Pai de Amor no mais íntimo de nosso ser que nos envia à luta e à profecia pela igualdade e equidade sociopolítica e econômica.

O texto diz: “os céus se abriram.” Desde o exílio na Babilônia, não havia mais profetas; os céus estavam fechados. A comunicação com Deus era indireta. Agora, a partir da inserção de Jesus, os céus se abrem para todas as pessoas. Não há mais regras ou leis que nos condicionem a ser aceitos por Deus. Ele é inclusão total, acolhendo todos e todas incondicionalmente.

Lucas ressalta que isso ocorreu enquanto Jesus orava. Deus escuta e atende a oração de Jesus, dando-lhe o Espírito Santo, que desce e permanece sobre ele. Esse Espírito, que pairava sobre as águas na criação (Gn 1), ao unir céu e terra é o mesmo que inicia uma nova criação. Como no dilúvio, quando uma pomba anunciou o renascimento da vida com um ramo verde no bico (Gn 8, 12), o Espírito desce sobre Jesus suavemente, inaugurando um tempo novo.

Hoje, a celebração do batismo de Jesus deve nos levar a renovar nosso compromisso de inserção na história e na condição humana. Nesse compromisso, atualmente, buscamos novas formas de união cósmica entre céu e terra. A destruição ecológica revela uma ruptura, e o projeto divino pede que restauremos essa união, unindo novamente céu e terra, a humanidade e a natureza.

O batismo de Jesus, realizado por João em um movimento espiritual popular que buscava justiça, paz e amor, nos desafia a abandonar dualismos e espiritualismos que divorciam a fé em Jesus do compromisso social que o Evangelho pede de todos e todas nós. É mergulhando na humanidade que revelamos nossa dimensão divina, sendo luz, sal e fermento em meio às trevas e às massas alienadas por discursos religiosos ultraconservadores que apoiam políticas que defendem privilégios de uma minoria e aprofundam desigualdades socioeconômicas.

Atahualpa Yupanqui, um dos maiores artistas argentinos do século XX, compôs “Soy libre, soy bueno,” que reflete a experiência de alguém que recebeu o Espírito e, por isso, pode amar de forma nova. A música evoca a mística do profeta que “cruza o rio,” mergulhando na vida para amar.

Unos ojos estoy viendo

Por esos ojos me muero

Soy libre, soy bueno

Y puedo querer

Me han dicho que tienen dueño

Y así, con dueño, los quiero

Soy libre, soy bueno

Y puedo querer

Quisiera cruzar el río

Sin que me sienta la arena

Soy libre, soy bueno

Y puedo querer

Al Diablo ponerle grillos

Y al amor unas cadenas

Soy libre, soy bueno

Y puedo querer

 

Quem quiser ouvir no YouTube, eis a gravação do grupo Tarancon: