O anel de tucum da santidade nossa de cada dia – Mt 5,1-12 (Ano B)
Neste domingo, a Igreja Católica no Brasil celebra a solenidade de Todos os Santos e Santas. Esta festa é uma ação de graças pela Páscoa de Jesus, revelando a força e beleza de sua ressurreição na comunhão dos santos e santas. Representa a unidade entre todas as pessoas, no céu e na terra, de cuja energia nós todos(as) recebemos graças e bênçãos. Céu e terra em profunda conexão.
Nesta ocasião, as comunidades refletem sobre o Evangelho das bem-aventuranças (Mateus 5,1–12). A palavra “bem-aventurança” aparece de vez em quando nos salmos e livros proféticos do Antigo Testamento, e representa uma bênção que, na espiritualidade popular brasileira, é profundamente significativa. A prática de abençoar é comum – pais abençoam filhos(as) e até aqueles que pedem ajuda agradecem com “Deus te abençoe”. Contudo, no contexto bíblico, a bem-aventurança vai além: não é dirigida a Deus, mas às pessoas, como uma oração profética. “Bendito seja Deus por você, por sua vida e por tais e tais acontecimentos. Bendito seja o Amor Divino pelos alimentos que recebemos”.
A bendição é o estilo mais comum de oração bíblica, é um jeito de expressar gratidão pelo mistério de amor que está em nós e nos envolve. No entanto, o sujeito ou destinatário da bendição é sempre Deus. As bem-aventuranças são outro tipo de bendição e são dirigidas às pessoas e não a Deus. É como se passasse do estilo de oração ritual para a oração profética, que é dirigida às pessoas e não diretamente a Deus.
O Evangelho de Mateus abre o Sermão da Montanha pondo na boca de Jesus oito bem-aventuranças, que algumas traduções descrevem como “Felizes as… pessoas pobres de coração, humildes, as que choram” e assim por diante. Mas ser bem-aventurado(a) tem um sentido mais objetivo do que apenas um sentimento ou emoção, significa mais do que felicidade. Contém o sentimento, mas vai além. Segundo o Padre André Chouraqui, “bem-aventurado” significa “Para frente, no caminho”, uma expressão que reflete a profunda riqueza que este termo evangélico contém, que não se limita a um estado emocional. Diferentemente de abençoado e também de feliz, bem-aventurado(a) significaria a pessoa que recebe de Deus o reconhecimento de sua dignidade e do sentido para a sua vida.
A bem-aventurança é uma forma de Deus nos declarar amados(as), queridos(as) e afirmar que nossa dignidade e valor são reconhecidos por Ele. É alguém que Deus proclama como sendo de sua predileção. Não porque Deus queira a pobreza, ou goste que as pessoas chorem ou vivam em situação de injustiça. É justamente o contrário. Deus privilegia as pessoas pobres e injustiçadas para lhes dar força para libertarem-se e, assim, não serem mais vítimas da injustiça.
As comunidades do Evangelho de Mateus viviam em tempos em que adversidades eram vistas como sinal de abandono de Deus ou como condenação. Jesus subverte essa lógica: os pobres, os que choram e os humildes são bem-aventurados. É o critério de santidade de Jesus, uma santidade vivida na dimensão social e política, não só uma forma de virtude interior e íntima.
A santidade que Deus quer é diferente da imagem habitual do santo e da santa. Em meio aos nossos problemas, fragilidades e contradições, testemunhamos o reino divino no mundo, ou seja, a realização do projeto de justiça e paz. Durante a ditadura militar-civil-empresarial no Brasil, tempos de perseguição às comunidades e movimentos de base, muitos de nós éramos reconhecidos(as) pela caminhada de resistência, por carregar no dedo o anel de tucum. Pedro Casaldáliga afirmava que o anel era uma responsabilidade imensa, um símbolo de pertença à caminhada de libertação dos pobres. Assim como Abraão, “esperando contra toda a esperança” (Rm 4,18), vamos em frente obedecendo à palavra que nos mandou partir em missão libertadora no meio do povo.
Hoje compreendemos que a comunhão de amor e de participação no mistério da vida que celebramos inclui não só pessoas batizadas, ou seja, cristãs, mas todos os que, em qualquer caminho espiritual e mesmo fora das igrejas e religiões, são tocados e conduzidos pelo amor divino, mesmo fora das tradições religiosas. É a comunhão dos santos e das santas que nos faz reverenciar hoje os nossos ancestrais, honrados nas espiritualidades afro-descendentes e indígenas, que celebram essa comunhão em suas crenças, com Orixás, Inquices, Vodus e outros.
Leonardo Boff e muitos irmãos e irmãs que nos apresentam a Cosmologia atual, falam da “comunidade da Vida”. O cientista e físico Fritjof Capra,mescreve: “A vida não é propriedade de um único organismo ou espécie, mas de um sistema ecológico. Nenhum organismo individual vive em isolamento”. Nós seres humanos somos os animais que mais dependem de todo o meio ambiente e de todos os outros seres vivos.
O biólogo Emmanuel Almada escreve: “O amor também é fenômeno biológico, como belamente demonstrado por Humberto Maturana. Segundo o neurobiólogo chileno, “o amor é fenômeno biológico que não requer justificação”. É o amor, a emoção, que fundamenta a socialização, uma vez que é ele que permite os encontros recorrentes entre os indivíduos.
Para Maturana, “o movimento contrário ao amor é a rejeição e a indiferença”. Convivendo com os empobrecidos e em profunda harmonia com a natureza, Francisco de Assis compreendeu que “só o amor constrói”.
Ao alargar o espectro do amor para os outros sistemas vivos, é possível compreender o amor como base de todas as alianças, não só entre humanos. É essa tendência de viver juntos, de atenção e aceitação da diferença que permitiu, ao longo da história ecológica da terra, o encontro entre espécies, inclusive entre parasitas e seus hospedeiros. Foi assim, num processo amoroso, como nos ensinou Lynn Margulis, que há bilhões de anos, na imensidão dos mares primevos, uma bactéria aeróbica penetrou em outra anaeróbica (como parasita ou como alimento, não se sabe), formando os primeiros eucariotos dos quais descendemos (Lynn, 1967, p. 14). (…) É o jogo autopoiético que caracteriza o encontro entre sistemas vivos descrito também por Maturana e Varela, onde se muda para continuar a ser (o mesmo)”.
A teoria de Maturana e Varela pode nos ajudar a compreender melhor quando Leonardo Boff, junto a pensadores de todo o mundo, afirma a espiritualidade como o desenvolvimento desta abertura interior ao amor e processo de amadurecimento interior e de plena realização humana é dimensão antropológica universal e se manifesta muito além das religiões.
Nesta festa dos santos e santas, podemos escutar de novo o chamado divino para a santidade que hoje toma forma diferente de outros tempos.
É preciso abrirmos os olhos para esse novo olhar sobre a realidade e a nossa vocação. A festa de hoje confirma cada um e cada uma de nós nessa caminhada. Vamos em frente, com esperança de que nossa vitória não vem de uma conjuntura mais positiva e não depende de tempos favoráveis, mas sim da força do amor divino que está em nós. Esse é o segredo da santidade nossa de cada dia.
Até hoje, a comunidade ecumênica de Taizé tem uma oração muito repetida na prece do meio dia, que resume o caminho e nos diz: “Guarda-nos, Senhor, na alegria, na simplicidade e na misericórdia, segundo o Evangelho (das bem-aventuranças). Abençoa-nos nesse caminho”.
Marcelo Barros