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Reflexão ao Evangelho da Transfiguração do Senhor (Ano B) por Ir. Marcelo Barros, OSB

Tornar nossa fé profética e martirial – Mc 9, 2-10 (Ano B)

Hoje o Evangelho de Marcos nos traz a cena que, comumente, se chama “transfiguração” de Jesus. Marcos descreve essa cena no contexto do caminho de Jesus em direção à cruz. O texto inicia dizendo: “Seis dias depois…”. Esse período de seis dias ocorre após Jesus alertar os discípulos sobre seu caminho de enfrentamento às autoridades de Jerusalém e a consequente morte na cruz. Os discípulos o reconheciam como consagrado de Deus (Cristo), mas, exatamente por isso ainda o viam como sendo sempre poderoso e vencedor e eram incapazes de aceitar que ele se encaminharia para a cruz, simbolizando fracasso e derrota.

A compreensão popular na cultura judaica sobre o Messias era a de um líder enviado por Deus para restaurar a realeza de Israel, purificar o templo e renovar a aliança divina com o povo. No entanto, contrariando essas expectativas, Jesus recusou-se a ser um rei tradicional, não buscava purificar o templo, mas abolir, como indicou ao mencionar “Destruam esse templo e eu refarei outro”, referindo-se ao templo de seu corpo. Sua relação com Deus era incompreensível para os discípulos e discípulas.

Mesmo décadas após a paixão de Jesus, a comunidade de Marcos enfrentava desafios semelhantes. Muitos cristãos reduziam a fé ao aspecto religioso, ansiando por milagres e enxergando Jesus como um líder que realizaria sua missão pela vitória contra os adversários e pela vitória do poder religioso. Jesus rejeitou essa perspectiva como tentação, proclamando que “Quem não assumir a Cruz como caminho de vida e de missão no mundo não pode ser meu discípulo”. 

Jesus não estava sugerindo que as pessoas deveriam gostar do sofrimento, pois Deus não se deleita em nosso sofrimento. Ele enfatizava que sua missão era cumprida não como Messias ou filho de Deus, mas como um simples homem, servo sofredor, cuja solidariedade ao destino dos mais pobres e explorados o levaria a sofrer o castigo que o império infligia aos servos rebeldes (a cruz).

Atualmente, alguns cristãos mantêm uma espiritualidade que separa a fé do compromisso social, alegando que a Campanha da Fraternidade prejudica a Quaresma ao abordar questões sociais e políticas como assuntos que nos desafiam no caminho da conversão. Marcos narra a transfiguração para abordar os desafios da comunidade cristã da época, buscando reafirmar a crença em um Deus de amor, não um Deus todo-poderoso, que é amigo dos seus amigos, mas cruel para quem não lhe obedece. Do mesmo modo, a própria figura de Jesus também tem de ser revista.

Durante séculos, a maioria dos cristãos na Igreja achou normal usar o nome de Jesus para conquistar povos e colonizar. Hoje temos dificuldade de compreender como padres, bispos e pastores, mesmo pessoas santas, conviveram com a escravidão negra e indígena sem denunciá-la. Provavelmente, no futuro, as pessoas terão dificuldade de compreender como nós, cristãos de hoje, aceitamos conviver com as imensas desigualdades sociais, com o racismo estrutural da sociedade, com a violência em todas as suas formas. Até hoje, muita gente acha que isso não tem nada a ver com a fé. 

Jesus chamou os três amigos mais íntimos para torná-los testemunhas da transfiguração. A cena é impressionante. Jesus leva Pedro e os dois irmãos, filhos de Zebedeu, para um alto monte. Eles eram os três apóstolos mais claramente identificados com a Igreja judaica e com a esperança messiânica do tipo popular judaico. Enquanto estão no monte com Jesus, conforme Marcos, embaixo da montanha, os outros discípulos discutem com os escribas (professores da Lei) e não conseguem curar um menino surdo-mudo que um pai, pobre e angustiado, veio pedir que fosse curado (Mc 9, 14 ss).

Aquele Cristo que Pedro, Tiago e João veem envolvido na presença divina e cheio de luz é o mesmo Jesus de Nazaré que se revelou a eles como pobre, impotente e candidato a morrer na cruz. Por estarem ainda muito ligados à cultura religiosa, Pedro propõe construir três tendas, como era costume na festa litúrgica das Tendas, e permanecerem ali no monte em uma espécie de êxtase carismático. Não se importavam com os outros do grupo lá embaixo em conflito com os religiosos e incapazes de curar.

No entanto, Jesus os levou para o monte para revelar qual era o projeto divino, mostrando carinho e cuidado por seus amigos e amigas mais íntimos. O fato deles verem ao lado de Jesus as figuras de Moisés e Elias é significativo. Isso indica que eles devem interpretar a experiência de Jesus à luz das experiências de Moisés e Elias registradas na Bíblia. Ambos tiveram que romper com uma visão limitada de Deus: Moisés confrontou a idolatria do bezerro de ouro (Ver Ex 32 e 33). No mesmo monte da aliança do Êxodo, o Horeb, Deus só se revelou a ele quando o profeta conseguiu ver a presença divina no silêncio de uma brisa da tarde. Enquanto Elias, que antes invocava fogo do céu contra seus adversários, teve que se despir do poder e de qualquer instinto de violência para cumprir a missão social e política que Deus o enviava (1 Rs 19).

Da mesma forma, agora, no monte da transfiguração, Jesus retoma essas experiências. No contexto do evangelho, os discípulos também eram testemunhas do fracasso de Jesus na Galileia e estavam em conflito com ele, pois não aceitavam que Deus permitisse que o seu Messias fosse ameaçado de morte e não fizesse nada para impedi-la.

Ali, aos três discípulos renitentes e teimosos em permanecer em uma religião ligada a milagres e ao poder, Deus declara: “Este é o meu Filho amado. Escutem-no”. Assim, Deus confirma e revalida a palavra que Jesus disse sobre o caminho da cruz como o único caminho necessário de fé e missão que ele aceita viver.

O Cristianismo tradicional interpretou isso no sentido sacrificial, acreditando que Jesus precisava morrer para cumprir um sacrifício oferecido a Deus. Essa visão, no entanto, não vai além da religião, apenas substitui o Judaísmo do templo e da sinagoga pelo Cristianismo das catedrais e do direito canônico. A transfiguração de Jesus propõe outro caminho de fé, distante da religião sacrificial e cultual.

Atualmente, nossa fé está desfigurada pela incoerência e separação entre fé e vida. Ser testemunhas da transfiguração é aceitar contemplar a luz divina presente nas relações ecumênicas e no caminho da unidade. É ver a glória de Deus na figura do Cristo que enfrenta os mestres da Lei, os religiosos do templo e os governantes dos impérios atuais.

Um desafio para a fé hoje é não permitir que o nome de Deus seja usado para legitimar a iniquidade. O Estado de Israel não tem o direito de usar a Bíblia e o nome de Deus para legitimar seu racismo e cometer genocídio contra o povo palestino. As Igrejas cristãs não têm o direito de usar o nome de Deus para permitir que pastores e líderes defendam no Congresso pautas como o latifúndio, o armamentismo ou o projeto de um Brasil pentecostal que não respeita a pluralidade cultural e religiosa.

A transfiguração revela que só podemos atingir a intimidade de Deus no cuidado uns dos outros e da mãe Terra, e no tratamento das chagas dolorosas que ferem a vida humana hoje. Como o apóstolo Paulo escreveu: “Ele transformará nossos frágeis corpos mortais para serem semelhantes ao seu corpo glorioso” (Fl 3, 21).

Reflexão por Irmão Marcelo Barros