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Reflexão ao Evangelho da Festa da Apresentação do Senhor por Marcelo Barros (Ano C)

Levar a encarnação até as últimas consequências (Lucas 2,22-40)

A festa da Apresentação de Jesus no Templo, como diz o Evangelho de Lucas 2,22-40, recorda o que teria ocorrido no quadragésimo dia depois do nascimento do menino.

Essa festa entrou no calendário das Igrejas antigas para substituir antigos ritos pré-cristãos. Nas regiões do norte da Europa, era costume, no dia 2 de fevereiro, quando surgiam os primeiros sinais do fim do inverno, que as populações do campo saíssem com tochas acesas para expulsar os maus espíritos. A Igreja cristã, que estava chegando naquelas regiões, converteu essas procissões com tochas — que tinha o objetivo de exorcizar as energias negativas e mandar embora o frio e a escuridão do inverno — em uma bênção e procissão das velas para aclamar Jesus como a verdadeira luz para todos os povos.

Essa substituição do rito considerado pagão por uma festa que faz memória de uma história dos Evangelhos da infância de Jesus fez parte de uma época na qual o Cristianismo substituiu as religiões da natureza. Hoje, porém, não somos chamados a substituir as religiões da natureza, mas sim a conviver com a pluralidade de crenças. O Sínodo da Amazônia e a exortação Querida Amazônia, do Papa Francisco, nos pedem para valorizar e procurar compreender as diferentes expressões de fé e espiritualidade dos povos originários.

O Evangelho de hoje nos traz um exemplo de inserção da Boa Nova em uma cultura na qual a boa notícia do Reinado Divino deveria se estabelecer. De fato, o relato do Evangelho de hoje começa e termina sublinhando que Maria e José agiram de acordo com a observância da Lei de Moisés (cf. Lc 2,22 e 39). Ora, nos anos 80 do século I da era comum, tempo em que as comunidades de Lucas escreveram seu Evangelho, a Lei de Moisés já não era mais obedecida pelas comunidades cristãs. Nem sequer existiu mais o Templo de Jerusalém, destruído pelo exército do Império Romano ao menos uma década antes. No entanto, o Evangelho mostra Maria e José indo ao Templo de Jerusalém e seguindo os costumes judaicos da época. Como família de fé judaica, Maria e José cumpriram o que a Lei de Moisés determinou: através de um sacrifício oferecido no Templo, a mãe se purificava da impureza legal advinda do sangue menstrual e do parto. Ao mesmo tempo, o menino, sendo primogênito ou filho único, deveria ser consagrado a Deus, e os pais deveriam oferecer um sacrifício de resgate para poderem ficar com a criança.

É verdade que Lucas dá pouca importância ao ritual do Templo e nem sequer conta os detalhes do rito. Ele ressalta mais o encontro de Jesus criança com os representantes do povo de Deus. O relato de Lucas parece se inspirar na profecia de Malaquias, que a liturgia toma como primeira leitura das celebrações de hoje (Ml 3,1-4). Trata-se de uma profecia que anuncia que um mensageiro misterioso, chamado “Anjo da Aliança” (que a tradição posterior viu como sendo o Messias), viria abrir e escancarar a porta do Templo para que o Senhor (Deus) pudesse entrar por ela. Essa profecia significa duas coisas:

A primeira é uma desmitização da religião: se um mensageiro de Deus ou anjo precisaria vir abrir a porta do Templo para Deus entrar, isso quer dizer que o Templo estava fechado — e não apenas fechado para as mulheres com seus fluxos de sangue e para os pobres doentes, mas para o próprio Deus.

Em segundo lugar, revela o papel do mensageiro: esse mensageiro (chamado “Anjo da Aliança”) tem como função reconstruir a ponte de comunicação entre Deus e seu povo.

Por isso, as Igrejas orientais chamam essa festa de Hipapanté, o Encontro do Senhor com o seu povo.

No caso do Evangelho, Lucas fala da purificação de Maria e do menino Jesus. No Judaísmo do tempo dos Evangelhos, ambos deviam ser purificados, pois o recém-nascido teve contato com o sangue da mãe. Para nós, cristãos de hoje, como reagiríamos se alguém escrevesse que Jesus e Maria precisavam ser purificados?

Acreditamos que, para Deus, ninguém precisa de purificação legal para ser acolhido e aceito pelo Amor Divino. No entanto, Maria e Jesus se inseriram na cultura do seu povo — assim como Deus quer que nós nos insiramos nas culturas do nosso povo, sejam elas culturas negras, indígenas, populares ou outras.

É importante compreender que, se Lucas apresenta Jesus como sendo esse Mensageiro da Aliança que veio abrir as portas do Templo para Deus entrar, de certa forma ele aceita o Templo e respeita a cultura religiosa de seu povo e de todos os povos — mesmo quando os templos permanecem fechados e Cristo precisa abri-los para que Deus possa entrar. Observe que Lucas apresenta Jesus no Templo, mas os protagonistas no Templo não são os sacerdotes, como prescrevia o judaísmo rigorista e fundamentalista. O protagonismo é de um profeta, Simeão, e de uma profetisa, Ana.

Para o Evangelho, no caso de Jesus, esse encontro ocorre quando o menino Jesus é acolhido no antigo Templo de Jerusalém por um casal de profetas idosos e inseridos na cultura judaica. Simeão é apresentado com características raras no Novo Testamento. O Evangelho diz que Simeão, assim como Noé e José, era justo, piedoso, esperava a consolação de Israel e era inspirado pelo Espírito — ou seja, era um profeta. Ele é a única pessoa que o Evangelho apresenta dessa forma: justo, piedoso e profeta. Esperar a consolação de Israel alude aos profetas da consolação (do tempo do exílio), quando a profecia já não podia ser apenas denúncia social, mas deveria incorporar o cuidado amoroso de consolar e restaurar a esperança das pessoas. Esperança que se gera e se cultiva nas lutas pelo bem comum e pelos direitos de todos e todas.

Apesar da dureza da profecia de Simeão a Maria sobre a espada de dor que lhe transpassaria o ser por causa de seu filho, o cântico de Simeão — o terceiro cântico do Evangelho de Lucas, depois dos cânticos de Maria e de Zacarias — vai além do que Zacarias cantou. Este profetizava que o Cristo viria libertar seu povo do poder dos inimigos. Simeão, no entanto, vai mais além. Diz que o Cristo, como o Servo Sofredor anunciado por Isaías (Is 49,5), será luz para iluminar todas as nações e será glória (ou seja, sinal da presença divina) para o povo da aliança.

Ao mesmo tempo, o Evangelho fala de outra profetisa: uma mulher chamada Ana. O Evangelho a apresenta até com mais detalhes do que Simeão, mencionando sua idade, sua origem familiar e sua devoção — que consiste em frequentar o Templo, orar e jejuar. No catolicismo popular, conhecemos muitas rezadeiras, benzedeiras e mulheres matriarcas que o povo chamava de beatas. Ana era alguém assim. E falava do menino a todos e todas que encontrava.

O Evangelho de hoje nos chama a valorizar esses profetas e profetisas do catolicismo popular, das religiões originárias, das Comunidades Eclesiais de Base e dos movimentos populares. Em nome da humanidade de hoje e para vivermos a missão de Jesus no mundo, precisamos ler e proclamar a Boa Nova do Reinado Divino para além dos templos. No entanto, cada vez que encontramos essas figuras proféticas do Catolicismo popular e também de outras espiritualidades, podemos reviver o encontro de Jesus com o seu povo. Quem expulsa um grupo de folia ou de congado do recinto de uma Igreja não dá testemunho concreto do Evangelho de Jesus e vai diretamente contra o Evangelho de hoje.

Somos chamados e chamadas a sermos hoje esses mensageiros e mensageiras da Aliança, testemunhas da consolação que Deus quer dar a todas as pessoas aflitas e renovadores(as) da esperança messiânica da humanidade.

A música de Dorival Caymmi, Dois de fevereiro, retrata bem essa inserção na cultura popular e a festa de Iemanjá em Salvador/BA: