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Reflexão ao Evangelho do XXVII Domingo do Tempo Comum (Ano B) por Marcelo Barros

As pessoas são mais importantes do que a lei – Mc 10, 2-16 (Ano B)

Neste XXVII Domingo Comum do Ano B, o Evangelho proposto é Marcos 10, 2-16. Trata-se de um texto no qual os religiosos do templo, adversários de Jesus, tentam lhe armar ciladas para acusá-lo de ser contrário à lei de Deus. Infelizmente, até hoje, alguns religiosos encontram na Bíblia argumentos para condenar pessoas que pensam de maneira diferente ou defendem políticas libertadoras para as mulheres e outras minorias marginalizadas.

Sabemos que, na maioria das sociedades antigas, o casamento foi organizado para garantir a perpetuação da sociedade patriarcal, na qual a mulher devia ser submissa ao marido. Precisamos compreender que até a própria Bíblia, que contém a revelação divina, foi traduzida para culturas humanas e, por isso, não poderia escapar dessa influência. Desde suas primeiras páginas, a Bíblia contém mitos e histórias pensadas a partir de uma cultura patriarcal. A revelação divina se deu passo a passo, em uma evolução com altos e baixos, com momentos mais humanizadores e outros carregados de preconceitos.

Até hoje, há setores eclesiásticos que se posicionaram contra certos direitos, alegando obediência à palavra de Jesus. Recentemente, um grupo que trabalha com direitos humanos revelou que, em algumas comunidades evangélicas, mulheres são agredidas por seus maridos, alguns dos quais ocupam cargos de liderança e ministros na Igreja. Quando essas mulheres se queixam às autoridades eclesiásticas, muitas vezes são aconselhadas por pastores a orar, a terem paciência, mas principalmente a aceitarem que o homem seja o chefe da mulher, como o apóstolo Paulo escreveu em uma de suas cartas.

Usar a própria Bíblia e a fé cristã para legitimar o absurdo de relações abusivas e desrespeitosas no casamento, ou simplesmente para perpetuar a cultura patriarcal, é o oposto da proposta de Jesus. Muitos pastores e grupos tradicionalistas, contudo, ainda perpetuam essa interpretação equivocada, conforme expressa o evangelho proclamado neste domingo.

No evangelho de Marcos, é a primeira vez que Jesus atravessa o rio Jordão, deixando a Judeia rumo a Jerusalém. Em território judeu, Ele enfrentou uma polêmica provocada pelos fariseus, que lhe armaram ciladas. Serviram-se da lei de Moisés, que permitia ao homem mandar embora sua esposa por qualquer motivo que o marido considerasse grave. Os religiosos da lei pedem que Jesus se pronuncie sobre isso. Jesus, no entanto, recusa-se a discutir a lei, colocando-se em outro patamar. Enquanto os fariseus falam em divórcio, Jesus usa o termo separação e é a partir desse termo que Ele diz que o projeto divino do amor e da união é anterior à lei de Moisés e, por isso, é importante retomá-lo. O horizonte que Jesus apresenta é resgatar a utopia original do amor e da vida partilhada.

Hoje, toda a exegese sabe que o relato do livro do Gênesis não é histórico, nem trata do início do mundo, mas sim da meta divina para a humanidade. Assim, a relação de amor e união entre duas pessoas que se tornam “uma só carne” é um projeto divino a ser alcançado e não um ponto de partida. Jesus ressalta que o amor é indissolúvel. Enquanto os fariseus querem discutir a lei, Jesus se nega a se colocar neste plano da lei.

Não é justo que as igrejas, em nome de Jesus, tratem o tema do casamento sob o prisma da lei, de forma moralista e fundamentalista. Isso as coloca do lado dos fariseus, e não do lado de Jesus, que nos chama a ultrapassar o plano legal. O que esse evangelho propõe é que, a partir de Jesus, sejam criadas novas relações de amor e de cuidado na família e no direito de todas as pessoas, especialmente naquela sociedade antiga, onde os direitos das mulheres e das crianças eram negligenciados.

Este evangelho não pode ser lido como se Jesus estivesse se referindo ao tipo de casamento que ocorre em nossa sociedade atual. Nos tempos antigos e até hoje em sociedades mais tradicionais, os casamentos são acordados entre as famílias que unem até crianças. Homens e mulheres se casavam aos oito ou até dez anos. O amor vinha depois, se viesse. As meninas eram dadas como dote à família do homem e, em alguns casos, era praticamente compradas.

Jesus, ao longo do evangelho, se posiciona contra o patriarcalismo, ampliando a compreensão da família para além da sua estrutura tradicional e praticando a comensalidade aberta, compartilhando a mesa com as pessoas empobrecidas e se colocando contra as estruturas fechadas da sociedade patriarcal.

No capítulo 10 de Marcos, se retoma a centralidade da criança no cuidado da comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus, tema já abordado no capítulo 9. Os versos finais deste evangelho destacam novamente a acolhida e o cuidado com as crianças. Seja porque elas são as primeiras vítimas do desentendimento e separação dos pais, ou porque, naquela sociedade, eram consideradas sem importância (e como já falamos, faziam crianças se casarem, sem que essas compreendessem o que estava acontecendo). Jesus valoriza as crianças e centra sobre elas a sua atenção. Quando os discípulos tentam afastá-las para proteger o mestre, Ele diz que não se pode colocar nenhum empecilho para que as crianças venham até Ele e as coloca como imagem da acolhida gratuita do reinado divino. É a partir das crianças, ou seja, dos menores, do elo mais fraco, dos mais vulneráveis, que qualquer questão deve ser abordada.

Em uma relação em que a mulher é desrespeitada, agredida ou violentada, ela é a “criança”, “a menor”, que deve ser ouvida, cuidada e amada acima de tudo. Em Mateus 19,3-9, Jesus não se prende a questões doutrinárias ou dogmáticas, mas teve a grandeza de ajudar as comunidades a refletirem que devemos nos inspirar na história, nas boas utopias, mas não podemos ser duros e insensíveis às complexidades que muitas vezes tornam necessários os divórcios. Assim, o autor do Evangelho de Mateus mostra Jesus admitindo que, em certos casos, o divórcio é compreensível. Diz o texto “em casos de fornicação/porneia” (Mt 19,9).

Se Deus é amor, ou o amor é Deus, não podemos, por obediência cega a doutrinas, discriminar aqueles(as) que se sentem crucificados(as) e oprimidos(as) no matrimônio, e lutam para se libertar. Em nome de Mt 19,3-9, devemos ser compreensivos e generosos com quem, cansado(a) de sofrer em uma relação falida, busca libertação, chegando à separação e até a procurar e encontrar um novo amor.

Na Exortação Apostólica “A alegria do Amor”, o Papa Francisco afirma: “… evoca-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua doação voluntária de amor. O fruto desta união é “tornar-se uma só carne”, quer no abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e mesmo em algum filho ou filha que nascerá dos dois e, em si mesmo, carregará em si as duas “carnes”, unindo-as genética e espiritualmente” (Amoris Letitia, 16). “Como característica que distingue seus discípulos e discípulas, Cristo pôs a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo 13, 34), e fez isso através de um princípio que um pai ou mãe costumam testemunhar na sua própria vida: «Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelas pessoas que ama» (AL 27).

Acolhamos, então, este Evangelho de hoje não como uma lei que define e ordena o que é permitido e o que é proibido, mas como um chamado ao amor, que é indissolúvel e se baseia na liberdade interior e na realização plena de cada um(a) de nós. É preciso não fazer uma leitura fundamentalista do Evangelho. O importante é viver o projeto divino do amor. Embora Jesus tenha falado de união entre homem e mulher em sua cultura, no mundo atual, a diversidade de gêneros e orientações sexuais nos leva a compreender que o amor é o que realmente importa e só este é indissolúvel.

Marcelo Barros