No princípio era a bênção (e até hoje é ela que nos dá força) – Lucas 1,26-38 (Ano C)
Para a maioria dos católicos no Brasil, Imaculada Conceição é o nome ou título de Maria, mãe de Jesus. No entanto, nem todos sabem que se trata da crença de que Maria foi concebida no útero de sua mãe sem a mancha do pecado original.
A afirmação de que Maria foi concebida sem pecado original não tem relação com sexualidade. Não se refere à relação conjugal de seus pais como sendo “sem mácula de pecado” em oposição a outras relações que geram filhos, supostamente dominadas pelo pecado. Infelizmente, essa crença muitas vezes é interpretada dessa maneira.
Quando a Igreja Católica afirma que Maria foi concebida sem pecado, enquanto todas as outras concepções humanas ocorrem no pecado, pode parecer que a graça da cruz de Jesus se restringe apenas a Maria. Essa compreensão, formulada em uma cultura do século XIX, quando o dogma foi proclamado, dá a impressão de valorizar mais o pecado do que a graça e a bênção divina, o que traz implicações para nossa vida e nossa relação com o mundo.
A Bíblia e o Evangelho nada dizem sobre a concepção de Maria. Por isso, a crença de que ela foi isenta do pecado desde sua concepção é um dogma que dificulta a unidade entre os cristãos. Nenhuma outra Igreja, nem as evangélicas nem as orientais, aceita esse dogma, que parte do pressuposto do pecado original. De acordo com essa doutrina, todos nascem no pecado como herança de Adão e Eva. Hoje, com a teologia que temos, essa crença precisa ser revisada e a linguagem da graça deve ser transformada.
O Evangelho lido nessa festa pode ajudar nessa reflexão. Trata-se do relato da anunciação do anjo a Maria (Lc 1,26-38), ou seja, o anúncio da vocação de Maria. Segundo estudos bíblicos, Lucas escreveu esse relato como um midrash — um comentário narrativo baseado em textos do Primeiro Testamento, especialmente Sofonias 3,12 em diante.
Esse profeta que viveu no tempo imediatamente anterior ao cativeiro da Babilônia, depois de textos pesados e pessimistas, conclui sua profecia convidando o povo à festa da alegria messiânica. No tempo do profeta Sofonias, cerca de 622 a.C., o motivo da festa e da alegria à qual o povo era convidado estava na renovação promovida pelo rei Josias, que unificava o povo por meio de reformas sociais e religiosas. Conforme as profecias do livro de Daniel), Gabriel seria o anjo encarregado de revelar o segredo messiânico das 70 semanas nas quais o Messias vai se manifestar. É esse anjo que fala com Maria. No Novo Testamento, Lucas retoma quase as mesmas palavras do profeta para narrar o anúncio do anjo Gabriel a Maria, na pequena aldeia de Nazaré, longe do templo e da pompa de Jerusalém.
Conforme o evangelho, ele já havia anunciado o nascimento de João Batista ao sacerdote Zacarias. Agora ele anuncia a vinda do Messias não no templo de Jerusalém, mas em uma casa pobre de Nazaré, aldeia da Galileia.
O anúncio não foi feito a um homem responsável pela descendência, chefe de família patriarcal mas a Maria, uma jovem pobre prometida em casamento a José. “Cheia de graça, agraciada ou graciosa” é a saudação que, nos textos bíblicos, o esposo dirige à amada com quem quer se casar. Aqui, Maria simboliza a nova aliança de Deus com seu povo, um convite para gestar o ser humano novo: Cristo.
Essa imagem de Maria como a comunidade messiânica, a nova Jerusalém, com a qual Deus quer refazer a aliança de amor e de bênçãos que tinha estabelecido e que o povo mesmo rompeu e abandonou, nos convida a nos ver nela. Então, Maria é figura da humanidade nova. É preciso reler esse evangelho, substituindo o nome de Maria pelo nome de cada um, cada uma de nós. O que o anjo diz a Maria, também nos diz: estamos todos “grávidos” de Cristo, chamados a viver essa humanidade renovada. Dentro de nós temos esse humano novo que precisamos viver em nós. Como disse Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
A ideia de um ser humano novo aparece em outros momentos, como nas cartas de Paulo aos Efésios e aos Colossenses. No século XIX, era o ideal socialista de Karl Marx; no século XX, o sonho de Che Guevara. Cada comunidade cristã deveria ser um ensaio dessa nova humanidade. Infelizmente, muitas vezes, as Igrejas, ao se aliarem ao poder ou priorizarem a lei acima das pessoas, se tornam o oposto disso.
Em uma sociedade marcada pelo desamor e pela indiferença em relação ao outro, a revolução começa em nós mesmos. Ética nas relações pessoais, convivência com as diferenças e e principalmente não deixar deixar que os adversários e inimigos nos roubem a única coisa que ninguém poderá tirar de nós: a preservação da nossa capacidade de amar. Isso é fundamental para resistirmos às opressões e às divisões.
Intolerâncias, rigidez de princípios, “queimação” de pessoas são coisas que sabemos existir na competição do mundo e no mercado de trabalho. A luta pelo poder dentro do sistema que nos oprime, nos deseduca mesmo em nossas relações na família e nos grupos aos quais pertencemos. É claro que todas as pessoas vêm com suas marcas de infância, suas feridas de educação e suas características de caráter. E aí tanto nos grupos como na caminhada da libertação, os conflitos pessoais se tornam comuns e inevitáveis, mas é possível administrá-los de maneira não violenta, principalmente para nós que, nas Igrejas e nas religiões, trabalhamos por unidade e queremos formar uma frente ampla das esquerdas que querem transformar o mundo. Nesse embate, algo que ajuda é não nos sentirmos pessoas importantes. Isso exige humildade: aceitar ser como crianças, abertas à reconciliação, nos torna capazes de caminhar juntos, mesmo em meio às diferenças de sensibilidade e de mentalidade.
Dentro de cada um de nós, há um berço onde resiste uma criança pura e frágil. Cada um e cada uma de nós tem no mais íntimo do seu ser uma espécie de “Imaculada Conceição”. Esse “núcleo imaculado” é um resquício de inocência (não ingenuidade), um ponto de partida para a construção de um mundo mais justo e humano, que subsiste a todas as intempéries da vida.
Como está a nossa relação com esse núcleo profundo do nosso ser, com essa criança interior? A construção de um mundo novo, fundamentado na justiça ecossocial e na paz, exige que acessemos e nos reconectemos a essa essência de criança em nós mesmos, que as pessoas com as quais convivemos também tenham acesso a essa parte essencial do nosso ser.
Na música “Bola de meia, bola de gude”, Milton Nascimento canta e nos lembra:
“Há um menino, há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão”.