O Casamenteiro do Amor Divino: dos serventes, o vinho bom (Jo 2,1-11)
Neste ano (C), o lecionário litúrgico nos faz escutar João 2,1-11, narrativa da festa de casamento em Caná, na Galileia, quando Jesus salvou a alegria da festa e sinalizou o casamento de Deus com a humanidade. Conforme antiga tradição cristã, esse evangelho está ligado à festa da Epifania, celebrada há alguns dias. O sinal das bodas de Caná sempre foi considerado como um dos sinais da manifestação (epifania/diafania) do Cristo ao mundo.
Em muitas tradições espirituais, a espiritualidade é vista como um mergulho no divino. Os pais da Igreja oriental falavam em divinização do ser humano. Por razões culturais e históricas, a Bíblia insiste na alteridade de Deus. Isso significa que Deus não é apenas uma partícula do universo ou uma dimensão de nós mesmos. Embora não negue que Deus se manifeste no universo e em nós, sublinha que no Mistério Divino há uma alteridade que não se reduz a nós ou à natureza. Todos os seres vivos e toda a natureza são sagrados; Deus está na imanência, mas transcende a criação. Essa visão bíblica expressa a intimidade divina em termos de aliança ou casamento entre Deus e a humanidade.
No Evangelho chamado de João (melhor título seria “Evangelho do(a) discípulo(a) amado(a)”), Jesus se apresenta e revela sua missão através de sete sinais proféticos. O primeiro sinal foi transformar água em vinho em uma festa de casamento. Sinal é diferente de milagre: um sinal aponta para uma realidade mais profunda que transcende o sinal em si mesmo. Trata-se de um relato simbólico e não de um ato mágico. Tem certa coloração macroecumênica (existem relatos semelhantes no culto oriental do deus Dionísio) e um forte conteúdo social e humano.
Neste relato simbólico, o Evangelho mostra Jesus fazendo da festa de núpcias de um casal pobre da Galileia o sinal da antecipação da sua “hora”, ou seja, da sua missão messiânica: a doação de sua vida por amor à humanidade, testemunhando um jeito libertador de viver, conviver e lutar pela construção do Reino Divino, que inclui uma sociedade com relações sociais de justiça, paz e amor.
Para as culturas latino-americanas, tão ligadas à alegria do convívio, é bom ver que Jesus começa seus sinais participando de uma festa de casamento e cuidando para que haja vinho — e de excelente qualidade. Por que faltou vinho na festa em Caná? (Cf. Jo 2,4). Por causa do vinho, muito sangue foi derramado naquela região (cf. Jz 9,12-13; 1 Sm 8,14; 1 Rs 21). A realidade era de escassez e carência. A solução aparece a partir da intervenção de uma Mulher, do trabalho dos servos (pequenos e insignificantes) e da solidariedade de Jesus. É nas mãos dos serventes que a água se torna vinho.
Depois da festa em Caná, cidade da periferia da Palestina, Jesus vai à festa da Páscoa em Jerusalém e lá Ele “estraga” a festa (cf. Jo 2,13-22), expulsando os vendilhões do Templo. Este episódio, segundo os sinópticos, precipita a decisão de assassinar Jesus. Porém, segundo Jo 11,45-54, o que precipita essa decisão foi a ressurreição de Lázaro, quando Jesus se revela como fonte de vida. Quem gera vida deve ser eliminado; não pode ser tolerado, concluem os adversários “judeus”.
As seis talhas de pedra simbolizam as seis festas judaicas e recordam a Lei inscrita em “pedras”. Na Bíblia, casamento significa a realização do relacionamento íntegro entre Deus e o povo: as núpcias definitivas. Desde Oséias (Os 2,21-22), Jeremias também aponta para a esperança de um casamento íntegro (Jr 31,1-4), com esta novidade: será a mulher quem seduzirá o marido (Jr 31,17-22).
O casamento em Caná quer mostrar que Jesus é o verdadeiro noivo, que veio para o tão esperado casamento, trazendo um vinho gostoso e abundante. Há quem estranhe que o texto fale de uma festa de casamento e não mencione os esposos. O fato de não nomeá-los é como se o noivo e a noiva pudessem ser qualquer um de nós. É mais um dado para compreendermos que esse relato é simbólico. Não deixa de ser significativo comparar a aliança de Deus conosco com uma festa de casamento.
No tempo de Jesus, as festas de casamento duravam oito dias. O evangelho conta que, nesse casamento na aldeia de Caná da Galileia, a mãe de Jesus estava presente e Jesus também foi com seus discípulos e discípulas. O evangelho chama a atenção para o fato de que, no meio da festa, faltou vinho. No mundo de Jesus, ainda mais do que atualmente, o vinho era elemento fundamental da festa. Faltar vinho significava que a festa havia fracassado.
Muitas vezes, esse texto é comentado sob uma perspectiva anti-judaica. Conforme essa leitura, a religião judaica estaria superada, assim como, nesse relato, as talhas destinadas aos ritos de purificação estavam vazias. No texto grego do quarto evangelho, há um jogo de palavras entre os termos “mordomo” (arquitriclínio) e “sacerdote” (arquihereus).
Afirmar que o mordomo não sabia de onde veio o vinho melhor é uma forma de dizer que a religião do templo e dos sacrifícios não era mais capaz de proporcionar a aliança da humanidade com Deus. A religião ritualista e fundamentalista não consegue transformar a vida em uma festa de alegria para todos e todas.
Embora tal exegese se explique historicamente pelo confronto entre as primeiras comunidades cristãs e o Judaísmo rabínico rigorista (que sobreviveu à invasão do Império Romano na Guerra Judaica), essa interpretação não pode levar à conclusão de que o Judaísmo seria uma religião vazia e ultrapassada. Tal postura conteria forte arrogância e é contrária ao modo de ser de Jesus e à sua proposta.
No relato de Caná, se há oposição, ela é entre a religião institucional — fundamentalista, ritualista e moralista (qualquer religião) simbolizada nos ritos de purificação (as talhas vazias) — e uma espiritualidade de intimidade com Deus, simbolizada no casamento. Essa nos vem de graça como o vinho novo dado por Jesus, espiritualidade comunitária e enraizada na vida, não presa a uma instituição.
A boa notícia desse Evangelho é que, em nossa vida cotidiana, nas nossas pobrezas sociais ou culturais, Jesus se mostra presente e nos revela, em sua pessoa e em cada ser humano, a glória de Deus, ou seja, o sinal da presença divina.
Em Caná, todos bebem o vinho melhor e se alegram. Só os discípulos (os serventes) sabem o que Jesus havia feito. O trabalho dos serventes é imprescindível para que a vida se torne uma festa. Jesus não se impõe, nem chama a atenção para si. O importante é ver os esposos felizes e os (as) convidados(as) satisfeitos(as). No Brasil, as comunidades eclesiais de base cantam: “Vinho melhor foi guardado para a festa que virá”. É a festa da justiça e da libertação de toda a humanidade. Jo 2,1-11 não valida festas luxuosas, festas de ricos, como se fossem as festas abençoadas por Deus. É a partir do trabalho dos serventes, com a água que têm, que se produz uma festa linda para todos e todas. A festa aqui é uma metáfora da vida.
Conforme esse evangelho, a fé não pode ser algo triste e pesado. Atualmente, há líderes religiosos que incutem a ideia de pecado em muitas realidades humanas e ficam impondo complexos de culpa nas pessoas. Alardeiam o tempo todo: “Isso é pecado!” O libertador é vermos a dimensão sagrada no humano e em tudo o que é humano e natural. Nossa fé deve ser alegre e afetuosa como uma festa de casamento. É claro que, às vezes, a fé parece mais um tempo de luta do que de festa. Assumimos a luta como um ensaio que antecipa as condições objetivas para que a vida se torne uma festa, como a hora de Deus em nossa vida.
Numa Comunidade Eclesial de Base (CEB), alguém comentou: “Jesus transformou muito vinho. Foram 600 litros. Será que beberam tudo?” Uma mulher respondeu prontamente: “O vinho novo é Jesus com seu projeto, e nós continuamos tomando até hoje. É Ele quem sustenta nossas vidas”. Na preparação dessa festa, podemos crer que somos divinizados, ou seja, cheios do amor e da intimidade do Espírito Divino, que nos chama a viver o seu amor universal. É o que Gonzaguinha expressa na música “O que é, o que é”, de 1982.